Título: DO OUTRO LADO DA FRONTEIRA, A CULPA
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 23/04/2006, O Mundo, p. 38

Mexicano vive atormentado por ter ajudado a construir barreira que o separa da família

TUCSON, Arizona. Ramón não se envergonha do que fez. Tampouco sente remorsos. Mas, de vez em quando, ¿vem lá de dentro uma dorzinha que me deixa em dúvida¿, disse ele, depois de tirar uma profunda tragada de seu cigarro, olhos fixos num ponto distante da paisagem pontilhadas por pés de cactus. A dúvida que vez por outra atormenta esse pedreiro mexicano tem um gosto amargo:

¿ Fico pensando: será que traí a minha gente? ¿ perguntou.

O fato é que a necessidade falou mais alto. Ele vivia em Nogales, no lado mexicano da fronteira. O trabalho era escasso ali, e os salários minguados. E como vários outros mexicanos ele acabou se alistando para um serviço que, além de mais dinheiro, lhe daria uma permissão temporária para cruzar para o lado americano da cidade, no Arizona, para desempenhar as suas funções.

¿ Eu ganhava (o equivalente a) dois dólares por hora, quando conseguia algum trabalho no México. E os gringos estavam me oferecendo nove dólares por hora para fazer o serviço ¿ diz.

Oferta irrecusável. O problema é que o serviço, contratado por uma empresa de arquitetura de Chicago, era a construção de um muro de cinco metros de altura ao longo da fronteira, bem no centro de Nogales, e que serviria para evitar ¿ ou ao menos dificultar ¿ que estrangeiros, como Ramón, entrassem ilegalmente nos EUA.

Ele aceitou sem pensar muito nas consequências. Afinal, precisava do dinheiro. Mas no fim da obra, ¿quando caí na realidade sobre o que significava o resultado do meu trabalho¿, Ramón aproveitou a chance para permanecer no lado americano da fronteira ¿ ilegalmente.

¿ Quando a obra estava perto do fim eu simplesmente não apareci para o trabalho.

Ele foi para Tucson, a 100 quilômetros de Nogales, onde acabaria se casando mais tarde com uma mexicana que também residia clandestinamente nos EUA. Eles, que hoje têm dois filhos cidadãos americanos, vivem com documentos falsos. Ramón trabalha para uma pequena empreiteira. De vez em quando ele volta à obra que levantara ao longo da fronteira, para conversar cara a cara com a mãe e uma irmã que permaneceram no México ¿ e para quem ele envia, religiosamente, US$150,00 por mês.

¿ Nós conversamos ali no muro, através de uma daquelas telas de aço que permitem ver o outro lado e ouvir os sons. Elas não têm documentos para vir me visitar. E eu, se for para o lado de lá, não conseguirei voltar para cá...

O muro que Ramón ajudou a construir às vezes tem o peso de um castigo eterno:

¿ Isso se transformou numa cruz que vou ter de carregar para o resto da minha vida. Mas o que eu podia fazer? ¿ perguntou Ramón, como se buscasse um cúmplice para dividir com ele a justificativa para um ato que ele, na verdade, preferia esquecer. (José Meirelles Passos)