Título: Um muro entre dois mundos
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 23/04/2006, O Mundo, p. 38

EUA se preparam para ampliar barreira que separa seu território do México

Não há como evitar a sensação de que o muro de Nogales tem alguma coisa a ver com aquele que dividiu Berlim durante décadas. Não se trata, obviamente, de algo idêntico. Mas a primeira impressão é de que aquele odioso símbolo foi transplantado da Alemanha para os Estados Unidos. A obra construída sobre a linha divisória com o México ao longo de um trecho de cem quilômetros tem de um lado Nogales, estado de Arizona, e de outro Nogales, estado de Sonora.

Os nomes são idênticos e as culturas, distintas. Mas nota-se claramente que são, do ponto de vista geográfico, duas metades de uma mesma unidade ¿ assim como era Berlim. Afinal, a muralha de cinco metros de altura passa exatamente nos centros urbanos da Nogales mexicana e da Nogales americana.

Para evitar um choque visual aos desavisados, o governo americano cuidou para que a parte central da barreira tivesse uma aparência mais leve. O muro fica junto ao posto do serviço de imigração que fiscaliza o freqüentemente gigantesco movimento de veículos e ainda os trens que circulam na ferrovia paralela à estrada. Com 300 metros de comprimento, essa parte da barreira é de concreto e aço, pintada de cor-de-rosa. Custou US$750 mil. Também foram abertas algumas janelas ao longo dela. Os vãos são cobertos por telas de metal perfuradas, sob moldura azul, e permitem ver o que acontece num lado e no outro. Pode-se inclusive conversar com alguém que esteja do outro lado, num sistema semelhante ao de prisões onde visitantes não podem tocar os detentos mas falam com eles por meio de frestas numa placa de vidro.

A encomenda que o governo americano apresentou às empresas que disputaram uma licitação para a obra dizia: ¿A barreira deve ser resistente a repetidos ataques físicos com instrumentos como maçaricos, cunhas, martelos, armas de fogo e à penetração com veículos. Mas deve, ao mesmo tempo, ter uma aparência o mais amigável possível, evocando a amizade entre as duas nações. Deve permitir a passagem de luz e dar uma aparência e sensação de abertura¿.

Levantado pelo regime comunista da União Soviética, o muro alemão tinha como função evitar que os habitantes da Europa Oriental cruzassem para a democracia ocidental. O de Nogales foi levantado pelos EUA para evitar ¿ ou pelo menos tentar reduzir ¿ a invasão de pobres latino-americanos.

Holofotes, câmeras e patrulha 24 horas por dia

Nas duas extremidades, o muro cor-de-rosa se encontra com outro, mais agressivo, feito com chapas de metal que vêm enferrujando sob o inclemente sol do deserto. São refugos do Pentágono: placas utilizadas em plataformas de aterrissagem de helicópteros do Exército americano nas selvas do Vietnã, durante a guerra. À noite, o muro é banhado pela luz de potentes holofotes instalados em torres de concreto. A luz permite que minicâmeras de TV fixadas em postes registrem tentativas de transpor a barreira. Furgões e jipes da Patrulha de Fronteira fazem ronda 24 horas por dia. Os agentes usam binóculos especiais que permitem enxergar na escuridão em áreas mais distantes do centro, onde ainda não foram instaladas torres de iluminação.

Uma nova lei de imigração, aprovada em dezembro pela Câmara dos Representantes, destina uma verba de US$2,2 bilhões para a construção de um novo muro, de 1.126 quilômetros de extensão, na fronteira com o México, fechando trechos visados pelos imigrantes ilegais. Além dos cem quilômetros já existentes no Arizona ¿ o ponto mais visado da fronteira ¿ há outros 80 quilômetros de barreiras na Califórnia e no Texas. A partir de amanhã, depois de duas semanas de recesso, o Senado americano voltará a discutir sua versão dessa lei, com uma proposta que estenderia o muro a toda a fronteira ¿ cerca de 3.200 quilômetros.

¿ Num momento em que as relações entre os EUA e a América Latina estão no seu ponto mais baixo desde o fim da Guerra Fria, essa proposta de fechar a fronteira com uma muralha é vista como uma afronta terrível. É difícil imaginar qualquer outro símbolo que reforce mais fortemente a nossa imagem negativa, e que contradiga de forma mais agressiva o conceito de boa vizinhança ¿ diz Michael Shifter, vice-presidente do Inter-American Dialogue, grupo de estudos hemisféricos com sede em Washington.

Na Nogales americana foram instalados parquímetros para o estacionamento de carros junto à calçada ao longo da parte light do muro. No lado mexicano, policiais vigiam para que ninguém faça pichações. Mas na parte em que o muro é metálico, volta e meia aparece alguém para fixar mais uma pequena cruz branca em memória de alguém que morreu tentando cruzar a fronteira. O nome da vítima é escrito na cruz. Se a pessoa não tinha documento de identidade, escreve-se apenas ¿desconhecido¿.