Título: Odisséia africana para escapar da miséria
Autor: Priscila Guilayn
Fonte: O Globo, 23/04/2006, O Mundo, p. 40

Máfias cobram mil euros por pessoa para a travessia por mar. Desde 1999, 103 mil clandestinos foram detidos

MADRI. Pateras ou cayucos. Assim se chamam as simples embarcações, de madeira ou fibra de vidro, que transportam africanos à Europa ou ao fundo do mar. O Crescente Vermelho mauritano calcula que cerca de 40% dos africanos que tentam esta via de emigração acabam se afogando. E se o número de imigrantes detidos ao cruzarem o Estreito de Gibraltar ou ao aportarem nas Ilhas Canárias nos últimos sete anos superam os 103 mil, a cifra estimada dos que morreram no caminho pode ser assustadora. Pelo menos, as autoridades ainda não tiveram coragem de divulgá-la. Em um boletim do Centro Nacional de Inteligência à Guarda Civil espanhola intitulado ¿Morte maciça de imigrantes¿, a que a agência de notícias Europa Press teve acesso, falava-se de 1.200 a 1.700 mortes apenas nos últimos 45 dias de 2005.

¿ O silêncio é inaceitável. E as autoridades espanholas, até hoje, têm respondido a essas tragédias com o silêncio. As máfias que organizam estas viagens descobriram nesta indústria da morte uma forma de ganhar dinheiro ¿ indigna-se Esteban Ibarra, presidente do Movimento contra a Intolerância, que há 15 anos trabalha com imigrantes que chegam à Espanha.

Viagem de 15km agora se alongou para mais de 150km

O medo de enfrentar uma viagem por mar sem saber nadar, ou o pavor de ser repatriado ou morrer antes de alcançar a costa espanhola não superam o desejo de tentar uma vida mais digna na Europa.

¿ Mas eles não se rendem. São fugitivos da miséria e tentam não dar crédito ao perigo ¿ conta Ibarra.

Chegar clandestinamente à Espanha ficou mais difícil, mas não impossível. Os radares do Sistema Integrado de Vigilância Exterior (Sive) passaram, em 2002, a controlar o Estreito de Gibraltar e, pouco depois, quase toda a costa andaluza. Com isso, a rota habitual que cruzava o Mediterrâneo num trajeto de 15 quilômetros ¿ do Marrocos à costa sul espanhola ¿ teve de ser substituída por rotas alternativas, mais longas e perigosas. O destino passou a ser o arquipélago das Canárias. E a origem deixou de ser o Marrocos e se transferiu para o Saara Ocidental, a mais de 150 quilômetros das ilhas espanholas.

¿ Os imigrantes que sobrevivem chegam às Canárias esgotados, ensopados, com hipotermia e incapazes de articular uma só palavra. Quando as ajudamos a sair das pateras, eles sorriem e choram. Depois vêm nos agradecer. Mas nem precisa. O olhar deles já diz tudo ¿ conta Juan Antonio Corujo, da Cruz Vermelha, que atende os imigrantes na ilha de Las Palmas.

Chegar com vida à Espanha não basta para completar o sonho destes imigrantes que se lançaram ao mar em pelo menos 5.700 barcos desde 1999: é muito importante não ser apanhado pelas autoridades. Agora mesmo, 2.200 imigrantes africanos esperam a repatriação. Se em 40 dias (prazo máximo legal de detenção) eles não forem devolvidos a seus países, serão postos em liberdade com uma ordem de expulsão que não costuma ser cumprida, por causa da dificuldade de voltar a localizá-los. A maioria dos imigrantes embarca apenas com a roupa do corpo e se desfaz dos documentos numa tentativa de que não descubram sua origem:

¿ O nível de estresse e ansiedade deles é enorme. Ser repatriado significa uma desonra muito grande. A viagem que fizeram foi graças ao dinheiro que juntaram durante anos. Ou graças à venda da casa onde vivem os parentes. Todos se unem para que um membro da família tente a vida na Europa ¿ conta Corujo. ¿ Se são repatriados, o sentimento é de fracasso.

Uma vez detidos ao pisar território espanhol, começa a contar o tempo para que Mauritânia os receba de volta, segundo o Acordo de Readmissão firmado com a Espanha. De lá, o governo mauritano deve repatriá-los a seus países de origem. O mesmo acontece quando as pateras são interceptadas ainda em alto-mar: os imigrantes também voltam ao lugar de partida, de onde esperam sua repatriação.

Calcula-se que mais de 45 organizações mafiosas, que cobram cerca de mil euros por ¿passageiro¿, controlam o tráfico de imigrantes clandestinos. Algumas dão ao imigrante o direito de duas ou mais tentativas, caso ele seja repatriado. Mas o desespero por tentar uma vida melhor é tão grande, assim como a dificuldade de economizar mil euros, que as máfias já não são a única opção.

¿ Agora existe um novo fenômeno. Um grupo se junta, compra madeira, constrói sua própria patera, compra um motor e um GPS e empreende viagem. Se conseguem chegar à costa espanhola, abandonam este barquinho em qualquer lugar ¿ conta Cristina Ruiz, coordenadora da missão de Médicos do Mundo em Nuakchott, na Mauritânia.

Enquanto isso, a imigração africana ganha atenção na agenda de reuniões de cúpula européias. Na quinta-feira, o chamado G-6 (Espanha, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Polônia) apoiou a criação de um órgão para combater a imigração ilegal. O G-6 também entrou em acordo para a doar 2 milhões à ajuda humanitária aos imigrantes que chegam às Canárias.