Título: GARRA E TALENTO
Autor: Beatriz Azeredo
Fonte: O Globo, 24/04/2006, Opinião, p. 7

Recentemente a mídia vem dando espaço para projetos sociais de arte e cultura que envolvem jovens moradores de comunidades pobres do Rio de Janeiro. Essas matérias trazem consigo o debate sobre a violência e a exclusão social nos grandes centros urbanos, que atingem em especial a juventude. É um quadro social, de verdadeiro extermínio do futuro: de acordo com dados do Ipea e do IBGE, 46% dos jovens de 18 a 24 anos têm menos de 8 anos de estudo, o que aumenta as dificuldades de inserção no mercado de trabalho, elevando a taxa de desemprego de jovens entre 15 e 24 anos para 18%, o dobro da média nacional. Eles também engordam as estatísticas de morte prematura por causas violentas: de cada 100 mil jovens de 15 a 24 anos, 45,8 morrem em decorrência de homicídio, a terceira maior taxa de mortalidade por homicídio do mundo, segundo dados do Mapa da Violência III, da Unesco (2002).

Essas reportagens mostram o potencial da arte e da cultura em processos educativos e de transformação social, iniciativas que vêm se multiplicando nos bolsões de pobreza nas grandes cidades e em especial no Rio de Janeiro. São projetos que florescem em lugares de elevadíssimo risco social, gerando um novo tipo de visibilidade para essas comunidades e rompendo com a situação extrema que aprisiona a juventude e paralisa a sociedade.

Organizações como AfroReggae, em Vigário Geral, Nós do Morro, do Vidigal, A.M.C., em São João do Meriti, Cia. Étnica do Morro do Andaraí, Orquestra de Cordas da Grota em Niterói, Toca o Bonde em Santa Teresa, e tantas outras, trazem notícias animadoras de jovens que ganham o direito de sonhar e circular, ajudando a redesenhar a geografia desta cidade, fragmentada pela desigualdade e pelo medo.

As boas notícias não vêm apenas do Rio de Janeiro. Experiências dessa natureza nascem em todas as regiões do país, do litoral ao sertão, do rural ao urbano, das grandes às pequenas cidades. São iniciativas de desenvolvimento local com ênfase no resgate e na preservação da cultura regional. São também experiências de fortalecimento de relações intergeracionais, na recuperação e no repasse de saberes e tradições, que fazem parte da identidade cultural das comunidades. E são, também, grupos artísticos profissionais que enveredam pelo chamado mundo social, comprometendo cada seu trabalho com a transformação da sociedade. Olhar para essas experiências significa compreender que a arte e a cultura oferecem um espaço privilegiado para o jovem se expressar e se organizar, além de exercer um enorme poder de atração, trazendo-o para processos educativos, de construção de identidades, fortalecimento da auto-estima e exercício da cidadania, gerando caminhos para uma inserção diferenciada no mercado de trabalho.

Uma pesquisa que está sendo realizada pelo Centro de Estudos de Políticas Públicas (CEPP) na Região Nordeste permite vislumbrar a dimensão desse fenômeno. Em Pernambuco, por exemplo, já foram identificadas 150 experiências como essas. A maioria é de organizações formalizadas e com pelo menos cinco anos de existência. O dinamismo se percebe com um número importante de projetos recém-criados e ainda em fase de formalização. Chama a atenção, no entanto, o baixo volume de recursos que movimentam: metade desses grupos funcionou no ano passado com menos de R$10 mil, ou seja, cerca de R$800 por mês.

É pequeno o número de grupos sociais que se apresentam regularmente no mercado artístico profissional, apesar da qualidade já alcançada por muitos. É necessário criar espaços para que circulem, entrem em contato com outras iniciativas similares e ganhem visibilidade para divulgar seus resultados e mobilizar a sociedade. A mostra ¿Brasil: Juventude Transformando com Arte¿, realizada anualmente no Rio de Janeiro, pretende ser um desses espaços. A primeira edição conta com o apoio de empresas e instituições públicas e privadas, refletindo o crescente interesse e investimento no tema. Nesta semana serão 21 grupos, envolvendo 400 jovens, que se apresentarão no Teatro Carlos Gomes, trazendo boas notícias de 15 municípios de diversas regiões do país.

Ao levar para o centro do palco espetáculos de qualidade artística resultantes de projetos sociais, almeja-se chamar a atenção para a riqueza dos processos envolvidos. A garra e o talento desses jovens demonstram que com oportunidades é possível exercer o potencial criativo de cada um, recriar o presente e construir um futuro menos desigual e mais digno para todos.

BEATRIZ AZEREDO é diretora do Centro de Estudos de Políticas Públicas e professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.