Título: PÓS-ISLAMISMO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 28/04/2006, O País, p. 4

BAKU. Existe, por trás de reivindicações de independência intelectual, aspirações de sucesso individual ou a aceitação valores da economia de mercado por parte de setores da sociedade de países islâmicos, um movimento pós-islâmico que representaria o declínio do islamismo? O diretor do Centro de Estudos e Documentação Econômica do Cairo, Alain Roussillon, assumiu, no seminário da Academia da Latinidade no Azerbaijão, a tarefa de analisar o fenômeno do pós-islamismo que, se de um lado existe e tem reflexos vigorosos tanto no movimento dos ¿novos intelectuais muçulmanos¿ quanto nas feministas islâmicas, por outro não é o reflexo da sociedade muçulmana como um todo: ¿Essa generalização arrisca sobretudo mascarar a complexidade e a ambivalência dos inúmeros processos em marcha nas sociedades muçulmanas¿, adverte Roussillon.

Favorecido pelo surgimento de novos instrumentos de comunicação, especialmente a internet, o pós-islamismo pode ser identificado em três aspectos: o surgimento dos novos intelectuais muçulmanos, que trouxe para o islamismo, embora marginalmente, os métodos de investigação das ciências sociais, como um olhar crítico dos textos sagrados, inclusive do Corão e análise dos modelos políticos, como a jihad, com perspectivas históricas, e não apenas religiosas.

Essas discussões trouxeram uma abertura para questões como os direitos humanos e a reabilitação do pluralismo religioso, criando as condições nesses grupos para um verdadeiro diálogo inter-religioso, ressaltou Roussillon.

Houve também transformações sociais e econômicas provocadas pela globalização dos mercados e dos intercâmbios, especialmente na universidade, favorecendo a consolidação de uma visão social nova.

As virtudes do ¿bom gerenciamento¿, o sucesso individual e o enriquecimento pessoal passaram a ser valores aceitos em determinados grupos, e até mesmo o consumo, quando ¿purificado¿ pelo respeito das regras morais de uma economia muçulmana, que rejeita o monopólio e o enriquecimento injustificado, e também a exploração capitalista do trabalho.

Um exemplo disso seria a empresa Mekka Cola que, segundo Roussillon, utiliza-se das mais sofisticadas técnicas de marketing para promover explicitamente o consumismo. Nesses setores, uma ¿sociedade civil islâmica¿ se consolida, cada vez mais independente do Estado e mais ligada aos sistemas transnacionais de informação e a redes de comunicação.

Roussillon diz que não há dúvida de que a internet contribuiu para explicitar o dilema do Islã e a modernidade, criando o que alguns chamam de ¿Umma virtual¿ ou ¿comunidade virtual¿ para os emigrantes. Os problemas específicos das comunidades islâmicas fora de seus países são abordados em sites para ajudar os emigrantes a interagir com a modernidade dos países em que vivem. Roussillon citou o trabalho de Tariq Ramadan por um ¿Islã europeu¿, que ensina comportamentos ao mesmo tempo ¿muçulmanos¿ e ¿modernos¿.

Talvez o mais marcante dos elementos desse pós-islamismo, diz Roussillon, seja o surgimento de novos parâmetros legais e éticos: os comandos religiosos teriam seus campos de ação estreitados em favor de uma ampliação dos direitos individuais, e a separação das esferas pública e privada em matéria religiosa.

Abrindo espaço para a afirmação de um movimento vigoroso como o do ¿feminismo islâmico¿, tanto nas sociedades muçulmanas como nas comunidades européias ou nos Estados Unidos. Esse vigor ficou patente, lembrou Roussillon, na luta contra a proibição do uso do véu na França.

Mas todas essas manifestações não apenas são minoritárias como merecem reações dos setores oficiais, adverte Roussillon.

Um grande número desses ¿novos intelectuais¿ muçulmanos tiveram que se exilar no exterior, e em 2001 o governo do Egito desencadeou uma perseguição aos homossexuais.

Alain Roussillon pergunta, entre cético e irônico: ¿Os principais interlocutores desses novos intelectuais muçulmanos não são aqueles observadores ocidentais que os reconhecem como tais?¿

Roussillon diz que assim como o termo ¿islamismo¿ foi criado por estudiosos ocidentais, também o termo ¿pós-islamismo¿ é fruto desses observadores, e corre o mesmo risco de generalizações, com as mesmas insuficiências e expostos às mesmas análises. Para ele, a grande fraqueza das categorias em que o islamismo é colocado nas sociedades muçulmanas é confundir os problemas dessas sociedades ¿ demográficos, êxodo rural, educação, injustiças sociais ¿ com a linguagem usada pelos contendores para marcar suas posições, todos usando ¿a verdade do Islã¿ de maneira generalizada.

O entendimento entre esses diversos contendores fica difícil quando cada um deles quer uma definição religiosa, e por outro lado a análise das sociedades muçulmanas contemporâneas fica reduzida aos discursos e práticas dos seus mais radicais componentes, ou dos mais marginais deles.

Roussillon diz que esse novo fenômeno conhecido como pós-islamismo é uma realidade resultante de uma inesperada hibridização provocada pela globalização. Mas não há nada que indique que o pós-islamismo corresponda à integral configuração religiosa e política do mundo muçulmano.