Título: SÓ COM RECIPROCIDADE
Autor: LUIZ FELIPE LAMPREIA
Fonte: O Globo, 28/04/2006, Opiniao, p. 7

Contando com forte suporte da China e da Índia, o Brasil conseguiu consolidar uma posição de liderança no Grupo dos 20, além de alcançar uma expressiva conciliação de interesses de mais de cem países em desenvolvimento, durante a última Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Hong Kong. Essa vitória resultou de um esforço hercúleo, competentemente desenvolvido em low profile pelo Itamaraty, e terá amplas e favoráveis repercussões em futuras negociações nesse nível.

No ano passado, um documento elaborado por economistas do Ministério da Fazenda sugeria, para perplexidade de quem conhece o assunto, que o Brasil ¿entregasse o jogo no primeiro tempo¿. Propunha-se nada menos do que uma redução drástica das tarifas aduaneiras consolidadas pelo país na OMC, dos 35% (máximo) de hoje para algo em torno de 10%. Numa repetição da equivocada estratégia dos anos 90, quando se acreditou que uma generosa e unilateral concessão brasileira resultaria em amplo reconhecimento e igualmente generosa retribuição pelo mundo desenvolvido, essa simplória proposta aparentemente ignorou o sucateamento industrial que se seguiu no país, atingindo expressiva parcela do parque produtivo nacional, sem qualquer ganho de mercado externo.

O documento em pauta teve alguma repercussão, gerando entre os analistas que cortejam a equipe econômica comentários como o de que o Brasil deveria abrir sua economia no mesmo nível alcançado pelos demais países emergentes no mundo. Mas logo em seguida o argumento foi neutralizado por competente estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria ao mostrar que o Brasil, ao contrário da crença difundida, é uma economia mais aberta e menos protetora do mercado interno do que a China, a África do Sul, a Índia, o México, a Rússia, a Tailândia, a Venezuela e o Vietnã, perdendo somente para a Coréia, para ficar apenas no rol dos países emergentes.

A Conferência de Hong Kong foi um evento componente da Rodada de Doha da OMC, iniciada em 2001 para definir mudanças nos acordos firmados no âmbito do GATT pela anterior Rodada do Uruguai, concluída em 1994. Tais acordos se mostraram extremamente desequilibrados quanto aos direitos e às obrigações das partes envolvidas, ao promover a prosperidade de poucos países desenvolvidos em detrimento da maioria em desenvolvimento.

Numa demonstração clara de que negociações internacionais requerem competência e organização, o Grupo dos 20 países coordenados pelo Brasil reverteu em Hong Kong a condição de subserviência às nações de primeiro mundo que sempre vigorou no passado. Consta da declaração emitida no evento, pela primeira vez, a definição de um prazo para a conclusão de uma efetiva abertura do mercado agrícola dos países de primeiro mundo, e de um paralelismo no processo dessa abertura comercial agrícola com as concessões no mercado de produtos industrializados e de serviços localizados nos países em desenvolvimento.

A data definida para a eliminação de todas as formas de subsídios às exportações de produtos agrícolas é o ano 2013, em processo a ser implantado gradativamente, mas com substancial corte a ser efetuado antes de 2010. Todas as formas de subsídios para o algodão deverão ser eliminadas pelos países desenvolvidos até o final de 2006, coincidindo com o término da Rodada de Doha, o que confirma a posição corajosamente defendida e vencida pelo Brasil em recente painel na OMC.

Houve plena convergência no que concerne ao tratamento diferenciado entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, matéria que pode parecer requinte técnico, mas que resultará em benefícios concretos para os menos desenvolvidos. Nesse contexto pode-se destacar o mecanismo que será aplicado nas reduções de impostos de importação, conhecido como ¿fórmula suíça com mais de um coeficiente¿, que traduz um tratamento diferenciado em termos tarifários e permite o monitoramento da abertura comercial dos países menos desenvolvidos em função da abertura real que vier a ocorrer no mercado agrícola dos países desenvolvidos.

Na Rodada de Doha, especialmente a partir da Conferência de Cancún, o Brasil passou a agir com nítida maturidade no tabuleiro de negociações internacionais, fazendo concessões em seu mercado interno apenas sob a condição de reciprocidade e ¿ o que é mais importante e por muitos ignorado ¿ preservando indispensáveis espaços para políticas públicas de estímulo ao seu desenvolvimento. Este é o aspecto mais importante das negociações internacionais no contexto da Rodada de Doha, que ¿ esperamos ¿ sinalize a forma de atuação futura do país perante seus parceiros comerciais no atual mundo globalizado.

NELSON BRASIL DE OLIVEIRA é vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina (Abifina).