Título: Homens de preto
Autor: Mauro Ventura
Fonte: O Globo, 28/04/2006, Rio, p. 16

Livro, por meio de ficção, conta histórias do Bope e fala da relação entre polícia e política

Opolicial se desespera ao ver a criança morta e diz a seu superior: ¿Capitão, fomos nós que matamos a menina¿. O oficial responde: ¿Esquece. O avô dela está convencido de que foram os bandidos; então foram os bandidos, porra¿.

Nas 315 páginas de ¿Elite da tropa¿, livro que se lê de um fôlego só, o leitor vai dar de cara com histórias de revirar o estômago: cenas de execução e tortura, policiais seqüestradores, assassinos e corruptos. Vai conhecer as entranhas da corporação, contadas por gente de dentro. Mas essa é uma leitura parcial e apressada: além de, pela primeira vez, dar voz aos policiais, o grande mérito do livro é mostrar como a polícia se rendeu à política.

É um deputado simpático e bonitão que exige a soltura do amigo preso com uma arma ilegal. É um comandante do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) alertando para os riscos de invadir a favela durante um baile funk e o governador exigindo a intervenção, que termina com dois inocentes mortos e um terceiro ferido. É uma autoridade policial que manda seqüestrar um traficante para exigir dinheiro e pagar dívidas de campanha.

¿ A segurança pública foi aparelhada e se tornou parte da máquina política ¿ diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos autores do livro, ao lado do ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel e do capitão da PM André Batista, ex-Bope. ¿ Freqüentemente, a indicação dos profissionais é política. Por que diabos um político quer ter uma delegacia? Para influir naquela região ou por interesses escusos: captar recursos para a campanha eleitoral. Essa politização é gravíssima e está caracterizando a segurança pública.

Batalhões e delegacias loteados

Pimentel também destaca o ¿loteamento de delegacias e batalhões¿:

¿ Antigamente, o político indicava um amigo para o Ibama, para Furnas, de modo que ele repassasse dinheiro ao político. Descobriram que a segurança pública pode cumprir exatamente a mesma missão, com dinheiro ilícito vindo de transporte alternativo, caça-níqueis, clínica de aborto, casa de massagem.

No prefácio de ¿Elite da tropa¿, que chega às livrarias no dia 8 pela editora Objetiva, eles advertem: ¿Os relatos que compõem o livro são ficcionais, no sentido de que todos os cenários, fatos e personagens foram alterados, recombinados e tiveram seus nomes trocados¿. Os nomes são fictícios e alguns personagens resultam da fusão de pessoas. Mas o livro é inspirado em histórias reais.

O título faz referência ao Bope, esquadrão de elite da PM, considerada uma das mais atuantes tropas de guerra urbana do mundo. O Bope, que tem como símbolo uma caveira com uma faca enfiada, foi ¿concebido e adestrado para ser máquina de guerra¿, como escrevem os autores. ¿Não foi treinado para lidar com cidadãos e controlar infratores, mas para invadir territórios inimigos¿.

Nos exercícios, os soldados entoam canções em que se dizem mensageiros da morte que têm como missão trazer ¿o desespero, e a total destruição¿. Soares observa:

¿ São jovens de 18 a 23 anos adestrados para agir como cães selvagens. Eles fazem isso de forma absoluta. Agem com o máximo de lealdade à instituição e servem à sociedade de acordo com o que lhes foi transmitido. Mas depois cobramos deles sem olhar para a orientação equivocada que os faz violentos.

Pimentel pensa parecido:

¿ O leitor vai perceber o que acontece antes de o policial ir à favela e cometer a bala perdida. Vai descobrir que seu superior tentou de toda forma explicar para alguma autoridade política que a ida à comunidade não era razoável e que envolvia muitos riscos ¿ diz ele. ¿ O policial errou, mas todo mundo trabalhou mal, desde o governador até ele. Só que é o soldado que assume a culpa, vai preso e é afastado.

É como diz o narrador do livro ¿ um capitão do Bope inspirado nas experiências de Batista, de Pimentel e de outros colegas: ¿O governador dorme o sono dos justos; o secretário descansa em berço esplêndido; o comandante repousa como um cristão; e o soldado, lá na ponta, suja as mãos de sangue¿.

E como suja. Em um trecho, ele explica: ¿Porrada em vagabundo, execução de marginal, esse departamento é com a gente mesmo¿. Mas, frisa o policial, com eles não tem corrupção. Em outro momento, lê-se: ¿O tenente Santiago empalou um vagabundo do Andaraí com um vassoura para ele confessar onde estavam as armas¿.

Em outro momento, há uma conspiração para matar Brizola. Um policial justifica a ação por causa da proibição de ¿subir morro, de invadir favela, de prender traficante¿. Segundo o livro, a operação só foi abortada porque a mãe de um soldado achou uma ¿maluquice¿.

O objetivo, dizem os autores, não é desprestigiar os policiais e sim promover uma reconciliação entre eles e a sociedade, ao mostrar a razão para tanta violência. Batista e Pimentel também participam do filme que o diretor José Padilha prepara sobre o Bope.

¿ Não tinha ninguém para dar visibilidade ao policial. Essa voz hoje é absolutamente muda ¿ conta Batista que, em seus seis anos de Bope, participou de mil incursões a favelas. ¿ Essa tentativa que estamos fazendo de dar visibilidade ao serviço policial é um pedido de socorro de quem está cansado de combater nessa política de segurança.

Confissão da fragilidade policial

Esta talvez seja a maior virtude do livro: revelar a promiscuidade entre polícia e política.

¿ No livro, estamos o tempo todo confessando nossa fragilidade. Confessando que a polícia é corrupta, sim, que tortura, sim, mas colocando os fatores que atuam para que isso aconteça e mostrando a vinculação com a política ¿ diz Pimentel.

Segundo ele, esta é a maior angústia dos colegas.

¿ Quando chegávamos para conversar sobre o livro, diziam: ¿Você vai falar que a polícia é ruim, é corrupta. Tudo bem. Mas você vai falar que são os políticos que estão mandando nesta merda?¿. Eu dizia: ¿Pode deixar que a gente vai falar¿. Tínhamos que deixar nítido o modo como a política estadual interfere na polícia ¿ conta Pimentel.

Em determinado momento, o narrador descobre que um sargento foi traído por um colega e morto. Ele pergunta a um coronel o que deve fazer, e ouve: ¿Capitão, você tem duas opções: denunciar à corregedoria, ser perseguido e acabar expulso da corporação; ou pedir desligamento e escrever um livro¿. Em seguida, dá um conselho: ¿Se você escolher o livro, não se esqueça de manter o passaporte em dia¿.

¿ O meu está em dia ¿ brinca Pimentel, ao ser perguntado sobre o assunto.

¿ O problema não é o passaporte, é o dinheiro para a passagem ¿ brinca também Batista.

Mas eles sabem que mexeram com um assunto explosivo. Apenas não conseguiam mais ficar calados.

¿ O Rio tem o direito de saber o que acontece com sua polícia. E com sua política de segurança pública. Merece ver o quanto ela é repetitiva e equivocada ¿ diz Pimentel.