Título: FREUD E PACIFISMO
Autor: Marcia Cezimbra
Fonte: O Globo, 29/04/2006, Prosa & Verso, p. 1

Quando convidado a debater com Einstein sobre o tema ¿Por que a guerra?¿, Freud endereça ao físico a seguinte questão: ¿Por que nos revoltamos tanto contra a guerra, o senhor e eu, e tantos outros, por que não a aceitamos como uma entre outras tantas necessidades penosas da vida¿? Com estilo de escrita inconfundível, responde à pergunta de modo inteiramente inusitado: longe de considerar, como era de se esperar, que a recusa à barbárie é conseqüência imediata da lógica da razão, afirma que para alguns o horror à guerra resulta, provavelmente, de um determinismo quase orgânico. No curso da História, as repressões sobre as satisfações agressivas mais primitivas adquiriram uma característica transmissível determinando que o gozo obtido pelo bárbaro seja indiferente ou mesmo insuportável para alguns homens. Apenas estes são sujeitos pacifistas, afirma Freud.

Sabe-se que a guerra é o campo privilegiado do retorno da barbárie à civilização moderna. Impossível erradicar este mal que faz com que a história do mundo seja, essencialmente, uma história de assassinatos dos povos. Freud não nutre ilusões: quando o homem experimenta o horror da guerra diante das crueldades perpetradas, isto se dá porque, no lugar da vítima, imagina um de seus familiares ou amigos. Seu narcisismo é ferido no momento em que se identifica com a vítima. Por outro lado, qualquer comoção de ordem caridosa despida da responsabilidade que cada um deve abrigar em si mesmo, é igualmente inócua e perigosa: pode se tornar um álibi aos próprios assassinos que, rápida e cinicamente, transformam-se em arautos da paz e assim se desculpabilizam. Apenas a aversão estética e ética pela guerra, situadas mais além da ilusão de um mundo sem violência e sem ódio, são capazes de minorar a experiência da barbárie no plano político. É assim que devemos compreender o final da carta de Freud a Einstein: indignar-se contra a guerra, significa simplesmente que ¿para nós pacifistas, trata-se de uma intolerância constitucional, de uma idiossincrasia¿.

E talvez o uso da expressão ¿intolerância constitucional¿ tenha sido apenas um recurso da retórica freudiana, para dizer sobre uma estratégia de combate que só pode emergir no campo da ética do outro. Freud insiste, com perspicácia, que o antídoto contra o traço compulsivo e indestrutível de assimilar, humilhar, destruir e infligir dores ao outro que a Humanidade carrega, é manter a chama do desejo de construir a vida permanente e infinitamente acesa. Para iluminar com cores fortes esta recomendação, nada melhor do que a lembrança dos intérpretes do Antigo Testamento de ler o Mandamento bíblico ¿Não matarás¿ pelo avesso, sob o signo do desejo: ¿Farás tudo para que o outro viva¿. É esta postura de compromisso com a vida que liga o freudismo ao pacifismo. Portanto, se há um lugar específico para a psicanálise na cultura, é o de convocar a responsabilidade do sujeito pelo Outro. E ainda que no plano do coletivo o analista seja impedido de exercer a clínica sob transferência (como ocorre no desenrolar da análise individual), por razões éticas não pode deixar de escutar e denunciar a impunidade requerida pelos movimentos a favor da guerra, da segregação e do racismo. ¿Tudo aquilo que trabalha pelo desenvolvimento da cultura trabalha também contra a guerra¿, dizia o mestre de Viena.

Trata-se, sobretudo, de fortalecer os laços sociais: e ¿se não aprendermos a distrair as nossas pulsões do ato de destruir a nossa própria espécie, se continuarmos a odiar um ao outro por pequenas disputas e matar um ao outro por um ganho mesquinho?¿ Freud responde à própria pergunta com um ato. Em 1934, quando os nazistas atiram seus livros às fogueiras de Berlim, pelo fato de ser judeu, recolhe das cinzas as letras e se põe a escrever outros. Uma contestação ética que o levou a trabalhar sem temor, ainda que sob a mira da política do extermínio. Apesar de a morte o espreitar de perto, interdita a violência onde ele se expõe, em função do devir da ciência que criou sobre a jurisdição do escritor.

Quanto aos destinos atuais da cultura, passados 150 anos do nascimento de Freud, não se pode ignorar que nos dias atuais ressurge a dimensão catastrófica da barbárie na cultura. Abre-se uma brecha no centro de novas formas do mal-estar na civilização: a delinqüência, a toxicomania, a indiferença e horror pelo estrangeiro, o terrorismo, o fundamentalismo e, finalmente, a massificação obscena do singular no seio da cultura. E a psicanálise, como fica depois de mais de um século de sua fundação, se enquanto discurso ela é atingida por todas estas incidências da vida social? Convém lembrar Freud e disso tirar conseqüências: quando foi preciso fugir da Áustria, ele propôs aos analistas presentes à última reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena que, no exílio, pedissem licença para continuar o trabalho de escuta da inesgotável melodia pulsional. Nesse momento difícil, apesar das decepções, dores e exílio forçado, deixa transparecer uma esperança: a psicanálise pode ficar na contramão e se sobrepor ao terror da História desde que o analista se mantenha fiel ao Inconsciente, um saber que não se sabe, e, a partir daí, abrace o trabalho de crítico da cultura que testemunha.

BETTY B. FUKS é psicanalista e autora de ¿Freud & a cultura¿ (Jorge Zahar)