Título: OS NOVOS DESAFIOS DA psicanálise
Autor: Marcia Cezimbra
Fonte: O Globo, 29/04/2006, Prosa & Verso, p. 1

Para psicanalistas, a questão contemporânea não é mais edípica, mas hamletiana: ser ou não-ser humano?

gritte, artista surrealista que fez do inconsciente tema de seus trabalhos

Qual é o lugar de Freud na cultura contemporânea, 150 anos depois de seu nascimento? As descobertas do gênio da psicanálise ¿ como o inconsciente e a possibilidade de intervir sobre ele ¿ são agora patrimônio da Humanidade. Uma das maiores autoridades em Freud no Brasil, o psicanalista Renato Mezan, diz que sem as noções freudianas sobre o complexo de Édipo, a sexualidade infantil, as defesas, as pulsões e a importância da sexualidade na vida das pessoas não se pode sequer pensar no século XXI. O psicanalista Benílton Bezerra Jr., do Instituto de Medicina Social da Uerj, cita Harold Bloom para completar:

¿ Somos todos freudianos, queiramos ou não. As idéias de Freud impregnaram de tal forma o imaginário cultural que se tornaram senso comum. Quem não sabe o que é um ato falho?

Mas a vida hoje é muito diferente da de 1856, quando Freud nasceu, em Freiberg, na Morávia, que na época pertencia ao império austro-húngaro. Para muitos psicanalistas, como o gaúcho José Outeiral, o sujeito atormentado por conflitos emocionais e desafios existenciais, representado pelo mito de Édipo, que ama a mãe e mata o pai, sucumbiu à velocidade da cultura contemporânea, à fragmentação, ao simulacro, ao pastiche, à globalização, ao cyberespaço, ao fast-food. Este ser humano do século XXI caiu nos vazios do não-existir. São os novos Hamlets e os novos Narcisos, que precisam apenas funcionar, fazer uma boa performance, se exibir em público para se defender do buraco negro do não-ser.

¿ Estas séries de acontecimentos atingiram o conceito de sujeito. Surgem as patologias contemporâneas: o vazio, as adições, o não-ser. Há um número maior de Hamlets que de Édipos. Mas a psicanálise preserva o conceito de sujeito psíquico e por isso torna-se ainda mais importante agora em nossa cultura ¿ diz Outeiral.

A psicanálise enfrenta muitos desafios para cuidar desse sujeito que não tem dilemas existenciais, mas, segundo Benílton, ¿disfunções¿ em relação à performance exigida pela vida social:

¿ É confortador achar que meu sofrimento não tem a ver comigo, mas com meu cérebro, meus genes, minha serotonina. Porém a importância do legado freudiano está no fato de que, para Freud, o sujeito está implicado no destino que o espera. Pode-se imaginar uma sociedade na qual os indivíduos abram mão dessa condição de sujeito de seu destino, como em ¿Admirável mundo novo¿, de Huxley, mas o sujeito freudiano estará para sempre em qualquer cultura que mereça o nome de humana.

Um dos desafios da psicanálise é justamente como tratar estes Narcisos, na opinião do psicanalista José Renato Avzaradel:

¿ Os Narcisos buscam a psicanálise, mas apenas para incorporar o analista ao seu sistema de defesas contra o vazio interno. Não querem mudar nada. Têm um comportamento aparentemente normal, mas a psicanálise não avalia a saúde psíquica por critérios sociais. Como estes vazios afetivos são anteriores à chegada do complexo de Édipo, aos três anos de idade, a psicanálise está voltada para recuperar a capacidade de amar e de reconhecer a existência do outro.

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