Título: EM CAMPO, A NOVA ESQUERDA
Autor: CANDIDO MENDES
Fonte: O Globo, 29/04/2006, Opinião, p. 7

As diferenças do resultado das eleições italianas, no seu mínimo impensável, levam a toda uma nova perplexidade nas decisões democráticas da atualidade. Os velhos jogos, até certo ponto óbvios das maiorias, empatam, perplexos. Um eleitorado exatamente dividido a meio exprime a fina matriz de dúvidas emergentes a uma nova complexidade de nosso tempo? Ou um senso final de segurança ou de desconforto com os rumos dos modelos contemporâneos cria uma opção grosseiramente plebiscitária, no simples pró e contra o que está aí? Pior ainda, exprimiria o pânico quanto à saída do status quo, ou o endosso, a todo custo, do risco de mudança, fora da acomodação das utopias às revoluções contemporâneas.

O futuro se torna pantanoso, após a queda do Muro de Berlim, tanto quanto as ideologias de mercado invadem visceralmente a esquerda.

O último confronto dos estudantes em Paris levou à barreira final e dramática contra as concessões do velho Estado de ¿bem-estar social¿ ao capitalismo global e suas oportunidades de emprego. A garantia da segurança a todo custo de um contrato de trabalho veio a prevalecer, e por ela a última trincheira em que a França resiste às modernizações pedidas pela globalização e à saúde mínima do lucro e sua acumulação na Europa do século XXI.

A incógnita nova das últimas grandes eleições européias traz a rachadura à exasperação milimétrica. Só se resolveu o problema em Berlim por um governo de coalizão rendido ao inexorável da coexistência, independentemente dos programas de confronto, ou ímpetos de inovação, a que emprestou a face Angela Merkel, desmaquiada de qualquer carisma ou surpresa.

Berlusconi não deixou dúvidas sobre o bloqueio de toda verdadeira mudança neste quadro. É, pois, uma Europa inercial que foi ao voto, nestes meses, numa escolha entre a mudança, exilada da utopia e o desconhecimento do quanto o mercado perdeu-se na selva da hegemonia, em nome ainda da velha globalização.

De toda forma, credencie-se ao professor de Bolonha, e à sua militância da cátedra o recusar, de princípio, à proposta de fazer de Roma a nova Berlim, do impasse de Angela Merkel. Refugou a tentação de Berlusconi e do governo amebiano de todos os freios. Não quer o ninho quente da acomodação, mas se ilude, ainda, do quanto a precipitação de crises pode de fato levar, não obstante o rigor da nova lei eleitoral, a nova e precipitada consulta às urnas nos próximos meses. Só se repetiria esta indecisão de rumos do Ocidente, a que, afinal, a ida ao voto só está servindo de mortalha. E por onde o mundo da racionalidade e da dita civilização voltará à utopia? E, sobretudo, em que limite vai aceitar o jogo sem volta do mercado, ainda que não nos traga mais o ¿fim da história¿?

Esses dias do governo Chirac, em queda de popularidade, farpeiam mais o futuro do que os jogos feitos do mundo dos ricos e da prosperidade tranqüila, em que a Europa deste último meio século encontrou uma prosperidade democrática, independentemente das flutuações políticas.

As novas instabilidades cutâneas do governo de Roma poderão, entretanto, a prazo médio, servir de álibi ao que agora começa em Paris. O mundo cada vez mais de velhos, da garantia de suas aposentadorias e, ao mesmo tempo, de segurança, desde logo, de um novo e difícil primeiro emprego, força o seu pé-de-cabra às pressões do capitalismo hegemônico.

Este maio de 2006 pode colher o fruto da primeira insubmissão de maio de 68. Ainda como um aviso, à época, desta insubordinação da história moderna por que passou, na Sorbonne, o rastilho da Revolução Francesa. Uma nova esquerda entra em campo, com o estudantado, aferrado a um levante instintivo, muito mais do que a um programa, ou mesmo a palavras de ordem. O velho Estado de bem-estar não sobrevive mais, apenas, nos glaciares escandinavos. Nem a futura campanha presidencial francesa repetirá o impasse torvo e a acomodação histórica de Berlim e Roma.

CANDIDO MENDES é presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.