Título: UM ROTEIRO PARA O FUTURO DA CHINA
Autor: JOSEPH STIGLITZ
Fonte: O Globo, 30/04/2006, Opinião, p. 7

AChina deverá adotar em breve seu décimo primeiro plano qüinqüenal, preparando as condições para continuar a mais notável transformação econômica da História ao mesmo tempo em que melhora as condições de vida de um quarto da população do planeta. O mundo não conhece exemplo igual de crescimento mantido no mesmo nível por tanto tempo; nem de redução da pobreza.

Parte do segredo do duradouro êxito da China é a rara combinação de pragmatismo e visão. Enquanto a maior parte dos países em desenvolvimento, seguindo a receita do Consenso de Washington, empenha-se na busca de um quixotesco crescimento do PIB, a China deixou claro mais uma vez que, antes de qualquer coisa, está à procura de aumentos sustentáveis e mais igualitários do padrão de vida.

A China se dá conta de ter ingressado numa fase de crescimento que impõe enormes, e intoleráveis, pressões sobre o meio ambiente. E, a não ser que haja uma mudança de curso, o próprio padrão de vida que os chineses perseguem ficará comprometido. E é por essa razão que o novo plano qüinqüenal dá grande ênfase ao meio ambiente.

Até mesmo regiões atrasadas da China crescem a um ritmo que seria admirável, não fosse o crescimento de outras partes do país ainda mais acelerado. A pobreza diminuiu, mas a desigualdade aumentou, com disparidades de crescimento cada vez maiores entre cidades e áreas rurais, e entre o litoral e o interior.

A edição deste ano do ¿Relatório do Desenvolvimento Mundial¿, do Banco Mundial, explica por que a desigualdade, não apenas a pobreza, deveria preocupar a China. E o décimo primeiro plano qüinqüenal que ataca frontalmente esse problema. Há anos o governo se refere a uma sociedade mais harmoniosa, e o plano descreve programas ambiciosos para alcançar esse objetivo.

A China reconhece também que a distância que separa os países desenvolvidos dos países menos desenvolvidos está não só na quantidade de recursos como também no grau de conhecimento. E preparou planos ousados para encurtar a distância e criar uma base para a inovação independente.

O papel da China no mundo e na economia mundial mudou, e o plano reflete essa mudança. Seu crescimento futuro terá como base a demanda interna, mais do que as exportações, o que pressupõe aumento de consumo. Na realidade, a China tem um problema raro: excesso de poupança. Seus habitantes poupam devido à fraqueza dos programas governamentais de seguro social, e fortalecer o sistema de pensões, a saúde pública e a educação será uma forma de reduzir as desigualdades, aumentar a sensação de bem-estar e fomentar o consumo.

Se forem bem-sucedidos ¿ e a China quase sempre supera até mesmo suas mais altas expectativas ¿ esses ajustes podem impor enormes pressões sobre o sistema econômico mundial, já desestabilizado pelos imensos desequilíbrios fiscais e comerciais dos Estados Unidos. Se a China for levada a poupar menos, e se, como anunciam as autoridades, adotar uma política mais diversificada de investimento de suas reservas, quem financiará o déficit comercial americano de mais de US$2 bilhões por dia? Este é um assunto a ser tratado outro dia, mas esse dia talvez não esteja longe.

Com uma visão tão clara do futuro, o desafio dos chineses é implementá-la. A China é um país grande, e não poderia ter tido o êxito que teve sem um amplo programa de descentralização. Mas a descentralização tem suas próprias dificuldades.

Gases de efeito estufa, por exemplo, são problemas globais. Enquanto os EUA afirmam que nada podem fazer a esse respeito, as mais altas autoridades chinesas agem com mais senso de responsabilidade. Um mês depois da adoção do plano, entraram em vigor novos impostos ambientais sobre carros, gasolina e produtos de madeira. A China vinha usando mecanismos de mercado para enfrentar os seus problemas ambientais e os do mundo. Mas agora as pressões sobre autoridades locais para apresentarem crescimento econômico e empregos vão ser enormes. E elas se sentirão tentadas a alegar que se os EUA não podem se dar ao luxo de adotar métodos de produção que preservem nosso planeta, por que elas poderiam? Para transformar visão em ação, o governo chinês precisará de políticas vigorosas, como os impostos ambientais já em vigor.

Enquanto adotava a economia de mercado, a China criou alguns problemas típicos dos países desenvolvidos, como os interesses especiais que encobrem argumentos egoístas com o véu diáfano da ideologia de mercado.

Alguns defenderão as virtudes da economia em que os benefícios vão se propagando dos maiores para os menores. É como se dissessem: não se preocupem com os pobres, no fim das contas os benefícios do crescimento serão distribuídos para todos. Outros serão contra a regulação da concorrência e a imposição de regras rigorosas de governança corporativa. Afirmam que a lei darwiniana de sobrevivência, por si só, produzirá resultados maravilhosos. Argumentos a favor do crescimento serão apresentados para contrabalançar fortes políticas sociais e ambientais: impostos mais altos sobre a gasolina, por exemplo, matariam nossa nascente indústria automobilística.

Essas políticas, que se dizem de incentivo ao crescimento, não deixariam apenas de produzir o crescimento; ameaçariam a própria visão do futuro da China. E só há um meio de impedir que isso aconteça: o debate sobre políticas econômicas para expor falácias e dar um sentido de finalidade a soluções criativas para os muitos desafios que a China enfrenta. George W. Bush demonstrou os riscos do excesso de sigilo e de restringir as tomadas de decisão a um estreito círculo de aduladores.

As economias de mercado não se regulam por conta própria. Não podem ser deixadas no piloto automático, especialmente quando se deseja que seus benefícios sejam amplamente compartilhados.

No entanto, gerenciar uma economia de mercado, longe de ser tarefa simples, é uma façanha árdua, que precisa responder constantemente às mudanças econômicas. O décimo primeiro plano qüinqüenal da China oferece um roteiro para desenvolver essa capacidade de resposta. E o mundo assiste, com uma mistura de espanto e esperança, enquanto a vida de 1,3 bilhão de pessoas continua a se transformar.

JOSEPH STIGLITZ é economista.