Título: Vidas despedaçadas
Autor: Vera Araújo
Fonte: O Globo, 30/04/2006, Rio, p. 17

Droga que causa dependência quase imediata, o crack chega aos jovens de classe média

Ocrack, subproduto do refino da cocaína, vem em pedaços grossos que são divididos em pedras menores. Aquecidas, elas estouram ou racham (crack), como diz o próprio nome, mantendo ainda um poder avassalador para despedaçar vidas. Louro de olhos azuis, 1,81 metro, classe média alta, X., de 18 anos, sentiu na própria pele o poder de destruição. Ele chegou a perder 15 quilos em apenas cinco meses de uso diário do crack, droga que atinge o cérebro em fração de segundos, causando dependência química. Na fissura pela droga, o rapaz lembra que, como um animal, depois de dias sem dormir, revirou móveis do quarto em busca de resíduos das pedras de crack pelo chão.

Outro dependente da droga, F., de 28 anos, conta em relato dramático, por carta, que estava morrendo de ¿pedra em pedra¿ de crack. Os dois ficaram internados em média por três meses em clínicas psiquiátricas e fazem terapia intensiva e reuniões em grupos de auto-ajuda nas zonas Sul e Norte. O relato dos dois comprova que cada vez mais jovens de classe média estão usando o crack. Outro jovem, W., de 25 anos, ficou com os pulmões comprometidos por causa da droga. A clínica para dependentes químicos do psiquiatra Jorge Jaber, em Vargem Pequena, recebeu de janeiro a abril 18 pacientes que fazem uso do crack, indício de que a droga ¿ que chegou ao Rio em 2003 ¿ já se instalou na classe média do Rio.

Segundo o coordenador das Delegacias Especializadas da Polícia Civil, Allan Turnowski, o crack foi a alternativa encontrada pelos traficantes para fazer frente às drogas sintéticas trazidas por rapazes de classe média, difundidas em festas rave:

¿ Os jovens, principalmente os de classe média, saíram da cocaína para a droga sintética. Por conta disso, houve uma queda do consumo de cocaína e prejuízo do tráfico. A solução foi introduzir o crack no mercado. Trocar a droga do amor, o ecstasy, pela droga da morte: o crack.

Facção quebrou acordo do crack

Segundo o coordenador das especializadas, a idéia de trazer o crack foi de uma determinada facção criminosa, a mesma que proibiu a sua entrada no Rio. Ironicamente, os motivos de abrir as portas para o crack também são os mesmos que fizeram os chefes do tráfico relutarem em vender a droga ao longo dos anos: a dependência imediata e o baixo preço. Por ser fumado, rapidamente o crack atinge o cérebro e cria logo uma dependência, o que traria novos consumidores. Na mentalidade do traficante, como a droga é mais forte, seria uma forma de atrair novos usuários, principalmente jovens, introduzindo-a como a droga da moda, por um baixo custo de R$5 por pedra.

A armadilha é justamente a de que o usuário não fica só numa única pedra, o que encarece o produto. De acordo com a cartilha publicada pelo Centro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas de São Paulo, os efeitos do crack duram, em média, cinco minutos, fazendo com que o usuário volte a utilizar a droga com freqüência, o que significa lucros para os bandidos.

Em contrapartida, como o consumo de crack mata num prazo de sete meses a um ano, os chefes do tráfico sabem que não terão comprador por muito tempo. Até o próprio traficante acaba se tornando dependente. O delegado Rodrigo Oliveira, que descobriu o crescimento do crack no Rio quando era titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes, explica que esta lógica e um suposto acordo de traficantes com fornecedores evitavam a entrada do crack no Rio. O produtor do documentário ¿Falcão - meninos do tráfico¿, Celso Athayde, faz uma reflexão pessimista:

¿ Não tem como evitar a entrada do crack aqui. Havia um acordo da criminalidade para que o crack não entrasse, mas foi quebrado. Agora, presenciamos uma destruição silenciosa. O crack chegou para substituir todas as drogas do momento, com um grau de velocidade de dependência avassalador ¿ diz Athayde.