Título: Petrobras vira objeto de xenofobia na Bolívia
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 30/04/2006, Economia, p. 35

Empresas do Brasil são vistas como usurpadoras das riquezas do país vizinho, historicamente assolado pela miséria

TARIJA (Bolívia). A pressão do gás que brota do poço Sábalo I ¿ um dos quatro explorados pela Petrobras no campo de San Antonio, no Sul da Bolívia ¿ é tão forte e ruidosa que só é possível se aproximar do local usando protetores de ouvido. Sábalo I, sozinho, produz por dia três milhões de metros cúbicos de gás, mais do que os 800 poços da Petrobras em Urucu (AM) juntos. Mas a pressão que vem das profundezas do solo do Gran Chaco boliviano, onde estão as maiores reservas de gás do país, não assusta a Petrobras. O que tira o sono de seus dirigentes há dias é outro tipo de pressão: o risco da nacionalização ou mesmo da expropriação de suas atividades, promessa de campanha do presidente Evo Morales, prestes agora a virar um decreto governamental.

A Petrobras é alvo de uma perigosa campanha de tons xenófobos que se espalha pela Bolívia, principalmente nas regiões indígenas do altiplano, e mira o Brasil, visto por lá como um usurpador das riquezas de um país historicamente assolado pela miséria.

Com mais de US$1 bilhão investido na exploração, no transporte e no refino de gás e petróleo na Bolívia, a Petrobras é o principal ator da economia do país. Responde por 15% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto das riquezas produzidas em um ano), 20% da arrecadação fiscal e 98% da capacidade de refino bolivianos. Os números temperam os discursos inflamados que transformam as empresas brasileiras em ¿títeres do imperialismo¿, uma das expressões prediletas de Jaime Solaris, secretário-geral da Central Operária Boliviana (COB) e uma das vozes mais radicais do país.

Líder radical defende que gás seja usado pelo país

Ouvir Solaris defender o controle dos meios de produção pelos trabalhadores é entrar no túnel do tempo. Junto a um pôster de Che Guevara, Solaris, um dos líderes do movimento que derrubou o ex-presidente Carlos Mesa no ano passado, é um defensor intransigente da nacionalização do gás boliviano.

¿- O povo boliviano, como o brasileiro, tem seus interesses. No nosso caso, a defesa dos recursos naturais. Se a Petrobras quer seguir trabalhando aqui, primeiro deve mostrar seu livro de contabilidade. Quanto tempo ela deixou de recolher impostos aqui? Antes de exportar nosso gás a preços ínfimos, a Bolívia deve usá-lo na industrialização do país ¿ brada.

Solaris não está sozinho. O povo boliviano enxerga na vitória eleitoral de Morales, primeiro boliviano de origem indígena a chegar ao poder, a oportunidade de romper com um ciclo histórico de exploração de recursos naturais sem mudanças na estrutura social. Pesquisas feitas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) revelaram que 80% da população defendem a nacionalização dos campos de gás.

Na era colonial, a prata financiou o poder e o luxo do império espanhol. Já no século XX, explorou-se o estanho. O bilionário Simón Patiño, descobridor e proprietário das minas, dava as cartas na política boliviana, enquanto destinava a maior riqueza para fora. Aos bolivianos, mais uma vez, só restava a miséria.

Convencidos de que as reservas de gás são o último recurso natural do país, eles não querem repetir as más experiências. A Bolívia de Evo Morales não quer seu gás transformado na prata e no estanho do presente. Enquanto o país caminha para uma Assembléia Nacional Constituinte, prevista para julho, o cerco sobre as empresas brasileiras se fecha. Nem mesmo a simpatia pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva inibe as animosidades.

¿ A Petrobras é maior do que o Estado brasileiro. O discurso da empresa é o de uma grande transnacional, que está por cima do Estado e dita as políticas do governo ¿ critica Chato Peredo, primeiro vereador do Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales, em Santa Cruz de La Sierra.

Ex-guerrilheiro que combateu ao lado de Che Guevara no interior da Bolívia e perdeu dois irmãos na luta, Peredo acusa a Petrobras de violar a Constituição do país ao celebrar um acordo com o governo boliviano sem submetê-lo antes à sociedade organizada e ao Congresso.

¿ A Petrobras deveria saber que aqui há Constituição, como em qualquer outro lugar do mundo. Os contratos são inconstitucionais. Não têm validade ¿ queixou-se.

Desde a posse de Morales, uma escalada de acontecimentos envolve interesses brasileiros na Bolívia e provoca focos de protesto em todos os cantos do país. As primeiras pressões elevaram os impostos pagos pela Petrobras de 35% para 50%. A situação se agravou no início deste mês, quando uma chuva torrencial destruiu dutos de gás e petróleo em La Quebrada de Los Monos. Moradores de comunidades espalhadas pelo Gran Chaco, que reivindicam autonomia, ocuparam as vias de acesso ao local do acidente, impedindo o reparo, a ponto de o governo ter sido obrigado a enviar tropas para proteger as equipes de manutenção. Até hoje, soldados do Exército, armados de fuzis, protegem as instalações do Campo de San Antonio.

Dias depois, o governo declarou inviável a construção de uma siderúrgica da brasileira EBX, do empresário Eike Batista, que produziria ferro fundido queimando carvão vegetal, porque afetaria os recursos florestais. A filial EBX-Bolívia, que começara há nove meses a construção de dois dos quatro altos-fornos previstos na província Germán Busch, em Santa Cruz, fronteira com o Brasil, é acusada de violar leis porque não tinha licença ambiental.

População protesta contra saída da EBX

Desta vez, o protesto da população se voltou contra o governo. Os moradores da região bloquearam a fronteira e chegaram a fazer três ministros reféns para protestar contra o fechamento da fábrica, que criaria 900 empregos diretos e 5.500 indiretos numa das regiões mais abandonadas da Bolívia.

Além de nacionalizar a produção de gás, assumindo o controle do volume extraído nas jazidas de San Alberto e San Antonio, e de seu preço, mantendo a Petrobras como sócio minoritário, Morales também não esconde a intenção de estatizar as duas refinarias do país, operadas pela estatal brasileira (em Santa Cruz de La Sierra e Cochabamba).

¿ Evo Morales sabe que o poder político não é suficiente sem o poder econômico. Por isso, precisa controlar o gás. Quem controla o gás controla a energia ¿ argumenta o economista Gonzalo Chavez, diretor do Mestrado em Desenvolvimento da Universidade Católica da Bolívia.