Título: DE SOTO: CONTRA A POBREZA, UM CHOQUE DE FORMALIDADE
Autor: Flávia Oliveira
Fonte: O Globo, 30/04/2006, Economia, p. 36

Economista peruano afirma que, para avançar, América Latina precisa de direitos de propriedade e empresas legais

O economista peruano Hernando de Soto é saudado América Latina afora por sua contribuição original aos estudos sobre pobreza. Para ele, a falta de direitos de propriedade está entre as fontes da pobreza nos países da região. De Soto se tornou um defensor ferrenho de uma espécie de choque de formalidade em todas as direções: territorial, comercial, tributária e até matrimonial. Fundador do Instituto Liberdade e Democracia, citado pela revista ¿Forbes¿ como um dos 15 inovadores que reinventarão o futuro, De Soto visitou o Brasil no início do mês. Em Porto Alegre, foi entrevistado por Luciana Kraemer para o ¿Conta Corrente Especial¿, da GloboNews. A seguir, os principais trechos da entrevista:

INFORMALIDADE NO BRASIL: ¿O primeiro problema é que vocês não sabem o tamanho da população sem direito de propriedade e que funciona na economia de mercado sem ter uma empresa. Se for como no resto do mundo, excederá os 50%. Devem-se analisar os obstáculos e determinar as leis e instituições responsáveis por eles. Consultando os excluídos, criar um regime legal que permita incluí-los. Por último, assegurar que o problema não se limita ao técnico. O problema é do presidente da República. Nunca vi qualquer país sair de um sistema maior de exclusão sem que a propriedade tenha sido, primeiro, um problema de Estado. Se na América Latina o problema da propriedade dos pobres continuar sendo da primeira-dama ou dos tecnocratas, não haverá mudanças¿.

PODER DO TRÁFICO: ¿Se a propriedade legal não está acessível aos pobres, não haverá um vazio: alguém vai ocupar este espaço. No Peru, parte da força do Sendero Luminoso (grupo guerrilheiro) era fruto da distribuição de títulos de propriedade nos lugares mais pobres. A única forma de vencê-los foi dar títulos melhores, dizendo: `a garantia é o Estado peruano e isso será muito melhor¿. Assim cooptamos todos os adeptos do Sendero. Asseguro que muitos terroristas do Oriente Médio estão protegendo a propriedade e os ativos dos mais pobres. É a única explicação para terem a simpatia do povo. Nem tudo é ideológico¿.

VISÃO POLÍTICA: ¿Em nossos países, há a sensação de que a propriedade é assunto para engenheiros, urbanistas; é uma discussão sobre estética, higiene. Ninguém vê o lado político, ou seja, que se trata de um sistema de emancipação para gerar riqueza. Tudo aquilo está certo, mas o fundamental é que a longo prazo todos se sintam mais bem servidos pela lei do que por um traficante ou pela ilegalidade. Se a maioria das pessoas prefere a ilegalidade, é porque eles têm uma proposta melhor que a do governo¿.

SISTEMA DE CRÉDITO: ¿Em vários lugares pobres, as taxas reais pagas para ter crédito são muito maiores que as do mercado legal. Vemos que, em muitos casos, pobres e excluídos pagam tantos impostos quanto os que estão no setor formal, porque nem todos os impostos incidem sobre a renda. Precisamos de uma estratégia global, e a tendência sempre foi ajudar os pobres na área de saúde ou de urbanismo ou num problema criminal. Se você dá um título de propriedade a uma pessoa que vive na favela, mas não oferece solução sobre o que fazer com sua empresa, não lhe dá legalidade, ele não vai entender. Há uma gama de questões a abordar: tem que resolver os problemas tributário, matrimonial e comercial. Não é uma questão de conceder títulos, mas de acabar com a informalidade em todos os planos. Não é um problema técnico e só será solucionado com a envergadura política¿.

JUROS NO BRASIL: ¿Às vezes, altas taxas são resultado da informalidade, pois se você pode usar as garantias das pessoas que pedem crédito adequadamente, há menos risco e as taxas vão baixar. Uma das razões pelas quais as taxas de juros são altas para os pobres é que eles não oferecem qualquer segurança. Você reduz o risco quando identifica as pessoas e elas estão dispostas a dar garantias com algo que lhes é valioso. Se você não tem medo de perder algo, nunca será um bom cliente de crédito. É uma lei inflexível da economia de mercado¿.

POPULISMO NA AMÉRICA DO SUL: ¿Foram feitas reformas para integrar os latino-americanos a um mercado maior, o que acabou favorecendo poucos. Os partidos de esquerda reuniram as reclamações, como é normal em democracias. Ou a América Latina se comporta como a Europa e os EUA, onde nomes como (Bill) Clinton (ex-presidente americano) e (Tony) Blair (primeiro-ministro inglês) dão sentido social à economia de mercado e fazem-na funcionar, ou a balança vai novamente tender para a direita. O problema básico é que a maioria não participa da economia de mercado e só há esse sistema no mundo. Pergunte a chineses, russos, indianos. O problema principal é a exclusão. Vamos ver quem tem as respostas mais criativas¿.

CHINA E ÍNDIA: ¿Na Índia, começaram a criar estatísticas para ver quem tem direito a propriedade ou empresa. Só 13% dos homens e 10% das mulheres estão no setor legal. Quase 90% estão no informal. Quem está no setor legal cresce. Você verá que a diferença entre ricos e pobres que se vê na América Latina logo chegará à Índia. A China já é assim. Na Costa Leste (Pequim, Xangai) há 250 milhões que produzem dentro da legalidade: têm direitos de propriedade e empresas legalizadas. Mas 1,050 bilhão está fora. Espere um pouco e verá como vão se parecer conosco. A lei é clara: se você não dá o mesmo direito a todos, produz concentração de riqueza. Logo eles terão os problemas que temos. Nem China nem Índia serão exceções. Eles também vão se latino-americanizar¿.

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: ¿Em economias de mercado, não há forma de avançar sem direitos de propriedade e empresas legais. E, na maior parte dos países, da Rússia à Venezuela, esses direitos não existem para os pobres¿.