Título: ERA DIGITAL DESBANCA A HISTÓRIA OFICIAL NA CHINA
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 30/04/2006, O Mundo, p. 45

Estudantes usam tecnologia para trocar documentários proibidos sobre massacre da Praça da Paz Celestial

PEQUIM. Por 17 anos, o episódio conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial ¿ em que milhares de estudantes que pediam mais democracia no centro de Pequim foram mortos após o governo chinês ter enviado tanques e tropas para reprimir os protestos ¿ continua banido de livros, jornais e salas de aula de universidades por toda a China. Em raras entrevistas de integrantes do governo, os tumultos que duraram de abril a junho de 1989 são vagamentes descritos como ¿distúrbios políticos¿.

Filme busca saber destino de homem que parou tanques

Mas a tecnologia digital está ajudando parte da nova geração de jovens chineses urbanos ¿ que ainda era muito pequena para lembrar de algo naquela época ¿ a conhecer os detalhes do massacre de uma forma que foge do alcance do controlador governo da China. Com a ajuda de pendrives e tocadores de MP3 (discos portáteis que podem armazenar de centenas de textos a filmes de longa metragem), estudantes universitários de Pequim trocam entre si documentários sobre o massacre.

É o caso do filme americano ¿The Gate of Heavenly Peace¿, dirigido e produzido por Carma Hilton e Richard Gordon em 1995. E do recente ¿The Tank Man¿, exibido dia 11 de abril no programa ¿Frontline¿, da rede de TV americana PBS. Cópias dos filmes baixadas da internet e arquivadas nos aparelhos são passadas de micro a micro pelos estudantes, que assim evitam o monitoramento de e-mails na rede chinesa.

¿ Sabemos que corremos riscos, mas os documentários correm de mão em mão nos dormitórios das universidades. As informações que temos deste episódio são as oficiais: distúrbios provocados por pessoas que queriam criar confusão. Mas no interior das casas, todo mundo tem uma história secreta para contar ¿ diz um jovem estudante de Pequim.

Neste momento, a novidade é ¿The Tank Man¿. O filme, dirigido por Antony Thomas ¿ que ainda não foi censurado na rede pelo governo de Pequim e pode ser assistido online no website da PBS de dentro da China ¿ tenta descobrir quem era e como está hoje o homem que, em 1989, parou uma fileira de tanques que saíam da Praça da Paz Celestial um dia depois do massacre. A imagem que impressionou o mundo e é facilmente encontrada por qualquer site de busca fora da China, não pode ser vista na rede dentro do país.

Enquanto ¿The Gate of Heavenly Peace¿ concentra seu foco na história do movimento de estudantes que pediam mais democracia na China, na história da própria Praça da Paz Celestial como palco dos principais protestos do país e nos anos de repressão que se seguiram ao massacre, ¿The Tank Man¿ usa a busca do misterioso homem que tentou parar os tanques (e do qual nada mais se soube desde então) como pano de fundo para questionar a ética das empresas americanas na China e a natureza desigual do crescimento do país.

Antony Thomas deixa implícito que a busca por uma fatia do mercado de consumo chinês pode levar companhias a atos no mínimo questionáveis, especialmente as empresas de internet dos EUA que operam no país, como Yahoo!, Google, Microsoft e Cisco. Numa das cenas, ironicamente, o diretor apresenta a estudantes da Universidade de Pequim fotos do homem parando a fila de tanques. Eles afirmam desconhecê-la.

¿ Os documentários são como consumir droga. Nem todo mundo faz e ninguém diz que faz, mas todo mundo sabe como conseguir alguma ¿ diz o estudante.