Título: CONTINENTE EM DESALINHO
Autor: José Manuel Calvo
Fonte: O Globo, 03/05/2006, O Mundo, p. 29

Guerra ao terror tira foco dos EUA sobre a América Latina, que pende para esquerda e populismo

Atropelado pelo excesso de tropas em outras regiões e com um governo desprestigiado, os Estados Unidos parecem ter perdido o controle de seu próprio continente. Washington se esqueceu da região porque o 11 de Setembro mudou seus planos e por terem sido decepcionantes os efeitos do ¿Consenso de Washington¿, que nos anos 1980 pedia menos regulação e mais privatizações.

Enquanto os EUA desviavam o olhar, a América Latina se deslocou para a esquerda. Para a esquerda clássica e para o populismo, que para alguns é esquerda. A comoção do 11 de Setembro facilitou um abandono que vinha de muito tempo: os EUA se esqueceram de seu quintal, primeiro porque a Rússia deixou de existir e depois porque a al-Qaeda não instalou acampamentos no Amazonas. Agora a política externa unilateral de Washington e a guerra do Iraque, unidas à decepção causada pela liberalização econômica, combinaram-se para criar uma opinião pública latino-americana crítica aos EUA. Segundo observadores de todas as tendências, e dos dois lados do Rio Grande (Rio Bravo para os mexicanos), EUA e América Latina nunca estiveram tão distantes.

Do Departamento de Estado, em Washington, só se vêem dois governos muitos amigos: Colômbia e El Salvador. Com outros, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, que têm governos da esquerda clássica, há boas relações, mas não sintonia completa. O resto se divide entre os que têm governos populistas ¿ hostis, como o de Hugo Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia ¿ e os que podem passar a ter, como Peru (segundo turno em 28 de maio), México (eleições em julho), Equador (outubro) e Nicarágua (novembro), entre outros.

Com mais de 500 milhões de habitantes, 60% das pessoas na América Latina têm uma visão negativa dos EUA; e só 34% confiam na liderança de Washington, segundo o Latinobarómetro. A visão positiva dos EUA no Brasil passou de 56% no ano 2000 para 34% em 2003, segundo o Pew Center.

¿ O que está acontecendo é grave. Se se fosse para a América Latina nos anos 1960, encontrava-se vários governos com sentimentos antiamericanos. Hoje as populações estão assim ¿ disse Andrés Pastrana, ex-presidente da Colômbia.

Perda de liderança moral e política

Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, diz existir uma nova situação:

¿ Nunca houve tantas críticas aos EUA como agora na América Latina. Nem quando dos conflitos de Cuba, nos anos 1960, nem sequer nos anos 1980, contra as guerras centro-americanas, havia o grau de sentimento antiamericano que há, na opinião pública e nos governos. Lula é o amigo dos EUA no Brasil!

¿ Os EUA perderam uma certa liderança moral e política ¿ indica Arturo Valenzuela, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Georgetown, que foi assessor para Assuntos Interamericanos do presidente Bill Clinton.

Washington deveria estar preocupado, diz Adam Isacson, especialista em América Latina do Centro de Política Internacional:

¿ Não só a maioria dos líderes não está muito entusiasmada com os EUA, mas está sendo eleita, em parte, por suas palavras contra os EUA. E é grave que o antiamericanismo ajude alguém a se eleger.

Álvaro Vargas Llosa, do Centro para a Prosperidade Global, explica o motivo para o afastamento:

¿ Os atentados do 11 de Setembro têm um papel importante. Na guerra contra o terror, a América Latina é um cenário irrelevante.

¿Se Chávez fosse um dirigente muçulmano, o que diz seria notícia de primeira página. Mas como fala em espanhol, todos bocejam¿, escreveu, no ¿Daily Telegraph¿, Niall Ferguson.

A secretária de Estado, Condoleezza Rice, corrigiu, em parte, o descuido de seu antecessor ¿ explicável, pois Colin Powell enfrentou o 11 de Setembro e duas guerras ¿ e viaja com certa freqüência à região. Há duas semanas, ela disse que não tem qualquer problema com governos de esquerda:

¿ Temos relações muitos boas com Chile, excelentes relações com Brasil, boas relações com Argentina.

¿ Não tem por que haver uma política latino-americana, tem que haver uma política por país ¿ afirma Otto Reich, responsável por América Latina do Departamento de Estado entre 2002 e 2004, concordando com Rice. ¿ Lembro-me que, há quatro anos, todos perguntavam o que faríamos se Lula ganhasse no Brasil. Qual foi o resultado? Lula é inteligente, centrista, certamente tem um programa social de centro-esquerda. Um presidente de esquerda não nos assusta, desde que seja um democrata que respeite os direitos de seus cidadãos e que não se meta nos assuntos de seus vizinhos.