Título: DESAFIOS PARA O LIBERALISMO
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Fonte: O Globo, 03/05/2006, O Mundo, p. 30

Desde que o liberalismo emergiu no século XVIII, seu inevitável conflito com a autocracia ajudou a moldar a política internacional. O que James Madison chamou de ¿a grande luta da época entre liberdade e despotismo¿ dominou grande parte do século XIX e a maior parte do século XX, quando potências liberais se alinharam contra formas de autocracia em guerras tanto quentes quanto frias.

Muitos acreditavam que essa luta acabara em 1989, com o colapso do comunismo, e que foi suplantada como principal fonte de conflito mundial pelas antipatias religiosas, étnicas e culturais, opinião aparentemente confirmada pelo 11 de Setembro e pelo crescimento do islamismo radical.

Mas a era atual pode estar moldando, entre outras coisas, mais uma etapa do conflito entre liberalismo e autocracia. Os principais protagonistas no lado da autocracia não serão os pequenos ditadores do Oriente Médio, que teoricamente são o alvo da doutrina Bush. Serão as duas potências autocráticas, China e Rússia, que oferecem um velho desafio não previsto no novo paradigma da ¿guerra contra o terror¿.

Se isto parece surpreendente, é porque nenhuma potência tomou o rumo que a maioria dos observadores previa. No fim dos anos 90, a trajetória política e internacional da Rússia parecia ser na direção ocidental, liberal. Em 2002, a China disse que caminhava para uma liberalização política maior e uma maior integração com o mundo liberal. Sinólogos e estrategistas argumentaram, que, gostassem ou não os governantes de Pequim, esta era uma exigência inevitável para transformar a China numa bem-sucedida economia de mercado.

Hoje essas suposições parecem questionáveis até mesmo para seus autores. Falar que a Rússia se democratiza, ou se integra, perdeu a força. Como disse recentemente Dmitri Treni, Moscou ¿deixou a órbita ocidental e iniciou um `vôo livre¿. A China continua a se integrar à ordem econômica mundial, mas poucos observadores falam que é inevitável sua liberalização política.

Até agora, a estratégia do Ocidente tem sido tentar integrar essas duas potências na ordem liberal internacional, para amansá-las e torná-las seguras para o liberalismo. Mas essa estratégia se baseava na expectativa de sua gradual e firme transformação em sociedades liberais. Se, em vez disso, China e Rússia se tornarem firmes pilares da autocracia nas próximas décadas, resistindo e até prosperando, não se pode esperar que adotem a visão de evolução inexorável da Humanidade para a democracia e o fim do regime autocrático. Em vez disso, pode-se esperar que façam o que as autocracias sempre fizeram: resistir à intrusão do liberalismo no interesse de sua própria sobrevivência.

De maneira discreta mas reveladora, é isto o que a Rússia e a China estão fazendo em lugares como Sudão e Irã ¿ onde ambas bloqueiam os esforços do Ocidente liberal para impor sanções ¿ e em Bielorrúsia, Uzbequistão, Zimbábue e Birmânia, onde apoiaram vários ditadores, desafiando o consenso liberal global.

Todas essas ações podem ser explicadas por seus interesses materiais. A China precisa do petróleo sudanês e iraniano; a Rússia quer centenas de milhões de dólares com a venda de armas e reatores nucleares. Mas há mais do que interesse material em suas decisões. Defender esses governos da pressão do Ocidente reflete seus interesses fundamentais como autocracias.

O mundo é um lugar complicado e a questão não é só uma luta entre liberalismo e autocracia. Rússia e China não são aliadas naturais. Ambas precisam de acesso aos mercados do Ocidente. E compartilham interesses com o Ocidente. Mas como autocracias não têm importantes interesses em comum. Toda as autocracias estão sob cerco numa era em que o liberalismo parece se expandir Ninguém ficaria surpreso se, em resposta, uma liga informal de ditadores surgisse, sustentada por Moscou e Pequim. A questão será o que EUA e Europa farão em resposta. Infelizmente, a al-Qaeda pode não ser o único desafio do liberalismo hoje, e nem mesmo o maior.

ROBERT KAGAN é colunista do ¿Washington Post¿