Título: POLÍTICA SOCIAL DE BONS RESULTADOS
Autor: Humberto Adami e Wania Santana
Fonte: O Globo, 04/05/2006, Opinião, p. 7

Em recente artigo publicado no GLOBO, os professores Peter Fry e Yvonne Maggie sugeriram que o projeto de lei 73/99 ¿ sobre a reserva de vagas nas instituições federais de ensino superior para afro-descendentes, indígenas e estudantes oriundos de escolas públicas ¿ provocaria, se aprovado, ¿uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora `raça¿ e pune o racismo como inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos¿ (¿Política Social de Alto Risco¿). Segundo os professores, isso ocorreria porque a lei em discussão instituiria, ¿no âmbito federal, o negro como figura jurídica¿ e, também, a divisão dos cidadãos ¿em duas `raças¿ com direitos distintos, de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias¿.

Diante de tais argumentos é importante frisar que, na visão contemporânea, a luta contra o racismo não se esgota ou se minimiza a atos punitivos. Como bem assinala todos os instrumentos internacionais sobre o assunto e do qual o Brasil é signatário, a luta contra a discriminação racial e o racismo exige, entre outras medidas, a promoção dos grupos vitimados por essas práticas. Frisa-se, com ênfase, que, no que tange às Convenções Internacionais, o Congresso Nacional é avalista de tais adesões assumidas pelo país no âmbito internacional.

Assim, não reza com a verdade mencionar que o Congresso Nacional, ao se posicionar favoravelmente ao projeto 73/99, estaria enveredando por ¿um projeto radicalmente novo de nação¿ e abandonando o seu ¿estatuto jurídico republicano¿. Ao contrário, o Brasil estaria cumprindo seus acordos internacionais e ¿ mais importante ¿ dando o seu exemplo, ao mundo, de que é capaz de estabelecer, internamente, regras substantivas de combate à discriminação racial e de promoção dos grupos afetados por essas manifestações odiosas. A não observação de tais compromissos legais, que, uma vez cumpridas as formalidades de ratificação, assumem força de lei interna, expõe o país às sanções de Cortes e órgãos específicos, como a Organização dos Estados Americanos e a Organização Internacional do Trabalho.

No âmbito internacional segue crescente a percepção de que o Brasil possui um problema de redistribuição desigual de recursos e oportunidades aos grupos étnicos raciais e de que a discriminação racial e o racismo estão na origem desse problema. Essa foi a principal tônica do Relatório das Nações Unidas, elaborado pelo Sr. Doudou Diène, Relator Especial para esses assuntos, e apresentado à sua Comissão de Direitos Humanos em fevereiro passado (E/CN.4/2006/16/Add.3).

Até mesmo as organizações multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento passam a perceber e a discutir este fato como um problema a ser enfrentado, dado os seus graves e negativos efeitos sobre a economia e o desenvolvimento social do Brasil e de outros países latino-americanos, que exibem, em sua história, o passado de escravidão e, na atualidade, a discriminação étnico/racial e oportunidades desiguais aos afro-descendentes. Em fevereiro deste ano, reunidos em Washington, e sob os auspícios dessas organizações, tivemos a oportunidade de debater esse preciso assunto com 75 líderes políticos, acadêmicos, empresários e organizações não-governamentais. Todos preocupados em desenvolver ações necessárias para reduzir as diferenças entre as oportunidades oferecidas aos latino-americanos de origem africana e os de origem européia.

Ou seja, esses exemplos demonstram que o diálogo sobre as ações de promoção da população afro-descendente ultrapassa as preocupações e percepções internas e está inscrito em um amplo cenário internacional, envolvendo um conjunto variado de atores e conteúdos.

Por outro lado, é forçoso admitir as experiências positivas e já em curso de políticas de ação afirmativa nas universidades públicas brasileiras, incluindo atenção especial ao grupo afro-descendente. Hoje, conta-se com quase três dezenas de casos, nos quais estudantes afro-descendentes e estudantes oriundos de escolas públicas tiveram os seus horizontes de conhecimento e profissional expandidos por princípios afirmativos e, em qualquer desses casos, o resultado se assemelha ao pânico vislumbrado pelos professores. Ao contrário, as experiências têm demonstrado melhoria dos resultados acadêmicos e maior preocupação do corpo docente em atender às demandas de jovens brasileiros por uma educação de alto nível. Em outras palavras, as políticas de ação afirmativa e a inclusão dos afro-descendentes não diminuem os direitos e, ao contrário, têm dado materialidade ao ideal republicano. Isso tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal, à luz dos princípios norteadores de promoção da igualdade pelo Estado, insertos na Constituição Federal, tem permitido, assim como os demais Tribunais dos Estados da Federação, a realização de tais experiências positivas.

HUMBERTO ADAMI é advogado. WANIA SANT¿ANNA é historiadora.