Título: FALTA LEI PARA REGULAR E INCENTIVAR AS ONGS
Autor: RODRIGO BAGGIO
Fonte: O Globo, 05/05/2006, Opinião, p. 7

No momento em que forças políticas do Rio jogam uma nuvem cinzenta sobre o funcionamento das ONGs brasileiras, comprometendo instituições sérias e esforços de décadas, vale lembrar a estreita relação das organizações não-governamentais com a causa da democracia e do desenvolvimento, sobretudo no aspecto da construção de uma sociedade mais justa. Aliás, entre as razões que levaram ao crescimento do chamado setor da cidadania (terceiro setor), em particular nos países com problemas sociais crônicos, está a inércia dos governos em cumprir a sua parte, a descontinuidade das políticas públicas e a falta de eficiência dos organismos públicos para tratar dos grandes desafios da atualidade.

O sentido maior do trabalho das ONGs tem tudo a ver com o conceito de Política em seu berço original, entendida como arte e exercício de servir ao bem comum. Essas organizações fortalecem o compromisso da sociedade com as questões da cidadania, buscando construir oportunidades e um novo ser humano, consciente de seu papel no mundo. Não foi à toa que, a partir da década de 90, assistimos a uma vertiginosa expansão do número de ONGs nos quatro cantos do planeta. Só na Índia, por exemplo, a segunda maior população mundial, existem dois milhões de organizações do setor da cidadania promovendo ações para reduzir a miséria e a exclusão social. Já no Brasil, a quantidade de ONGs deu um salto de 30% em apenas cinco anos (1991/95), segundo dados de uma pesquisa da UFRJ. Hoje, há 275 mil instituições, empregando cerca de dois milhões de pessoas, além dos voluntários.

Mais do que um modelo inovador de intervenção na realidade, que age na contramão do mero assistencialismo, as ONGs também deram origem e visibilidade ao empreendedorismo social, iniciativas arrojadas que provocam mudanças de alto impacto. Dos quase 1.800 empreendedores sociais certificados e apoiados por fundações como Ashoka, Avina, Schwab e Skoll, pelo menos 300 são brasileiros. O reconhecimento a esses empreendedores se faz através de inúmeros prêmios internacionais e nacionais, pois, a cada experiência de sucesso e exportação de suas idéias, eles mostram ser possível transformar a sociedade.

Segundo Bill Drayton, fundador da Ashoka, o empreendedorismo social mudou tanto a face do mundo que, há dez anos, seria difícil imaginar uma ação social na África sendo replicada na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Mas a essência do ofício do empreendedor social reside, exatamente, em multiplicar os resultados de seu trabalho, estimulando o potencial changemaker (agente de mudanças) que habita em cada um de nós, independentemente de cultura e lugar. Essa paixão e pró-atividade que perpassam o universo das ONGs já motivaram, inclusive, o prognóstico de que as iniciativas do terceiro setor vão definir o futuro da Humanidade.

Mas o que importa, agora, é o que nos aguarda pela frente, sem perder de vista a realidade brasileira e a conturbada relação público-privado em nosso país. Precisamos, com urgência, criar uma legislação consistente para regular e incentivar o funcionamento das ONGs, porque a atual está completamente defasada; estabelecer mecanismos de isenção fiscal no setor, à semelhança do que ocorre na área da cultura; e debater meios de viabilizar ações conjuntas com governos, uma vez que conquistamos o reconhecimento da legitimidade e competência das organizações não-governamentais como promotoras do desenvolvimento sustentável e com eqüidade. Nesse aspecto, porém, mora o perigo.

A maior proximidade das organizações do terceiro setor com os poderes públicos exigirá, mais e mais, a adoção de processos de gestão claros e transparentes, prestação de contas e uma permanente fiscalização por parte da sociedade e autoridades competentes. Assim, criaremos obstáculos à participação de ONGs em episódios escusos, como o que está envolvendo o ex-governador Anthony Garotinho, ou, no mínimo, evitaremos generalizações equivocadas. De fato, enquanto algumas instituições civis procuram apenas se beneficiar do patrimônio público, por debaixo dos panos a grande maioria continua lutando por credibilidade e um cenário social mais digno.

RODRIGO BAGGIO é diretor-executivo do Comitê para Democratização da Informática (CDI).