Título: Morde e assopra
Autor: Eliane Oliveira e Janaina Figueiredo
Fonte: O Globo, 05/05/2006, Economia, p. 27

Após Petrobras dizer que não admitirá alta do preço do gás boliviano, Lula afirma que negociará

Um dia depois de anunciar o cancelamento de novos projetos na Bolívia e de avisar que não admitiria qualquer aumento de preço do gás natural que surgisse fora dos prazos previstos no contrato em vigor, a Petrobras saiu ontem enfraquecida da reunião entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales (Bolívia), Néstor Kirchner (Argentina) e Hugo Chávez (Venezuela). Após o encontro, Lula admitiu que negociará com os bolivianos um reajuste dos preços, disse que se houver garantia de retorno de lucro a Petrobras continuará na Bolívia e afirmou que, para atenuar a precária situação econômica do país vizinho, têm de ser feitos investimentos dos governos regionais.

¿ Qualquer aumento de preço será acordado entre nós, mas ainda não começamos a discutir qual será o limite ¿ disse Lula, momentos antes de embarcar para Brasília.

Os quatro líderes respaldaram, em nota conjunta, a nacionalização das reservas de gás boliviano ¿ uma decisão unilateral ¿ mas afirmaram que um reajuste no preço do produto terá de ser negociado de forma racional e democrática, entre a Bolívia e o comprador. Eles também partilharam a visão de que a Bolívia precisa de investimentos para se desenvolver e deixar de ser o país mais pobre da América do Sul. E confirmaram que o fornecimento de gás está garantido.

Numa indicação de que pode barganhar para evitar um reajuste excessivo do gás consumido no Brasil, o que aumentaria os custos do setor produtivo, Lula afirmou que o Brasil terá projetos conjuntos com a Bolívia. Segundo o presidente, Morales encaminhará a ele, em breve, uma lista de demandas que, segundo autoridades que estavam em Puerto Iguazú, vão desde obras de infra-estrutura até programas sociais nas áreas de saúde e educação. Mas ele enfatizou que, no caso da Petrobras, a empresa tem autonomia para investir onde achar melhor.

¿ Como empresa, a Petrobras investirá onde tiver possibilidade de investir e tiver retorno de seus investimentos, inclusive na Bolívia ¿ enfatizou o presidente.

Morales recua, após falar em chantagem

Horas antes da reunião, o presidente boliviano disse, após uma conversa com Chávez em La Paz, que seu governo estava sendo chantageado pela Petrobras, por causa das fortes declarações feitas anteontem pelo presidente da estatal, José Sérgio Gabrielli. Ele disse que a empresa havia decidido suspender todos os investimentos na Bolívia. No entanto, depois do encontro entre os presidentes, Morales moderou o discurso:

¿ Já esclarecemos isso. A Petrobras é uma aliada estratégica da Yacimientos Petrolíferos Fiscais Bolivianos (YPFB) ¿ disse Morales, em uma das suas poucas intervenções.

O que o governo boliviano não admite discutir é a decisão de reajustar o preço do gás. Segundo disse ao GLOBO o ministro dos Hidrocarbonetos boliviano, Andrés Soliz Rada, cálculos preliminares indicam que o aumento seria de, no mínimo, entre US$2,5 e US$3.

A conversa entre os presidentes durou três horas e não contou com ministros ou assessores como testemunhas. Do encontro, saiu uma declaração conjunta destacando a importância da integração energética na região, da garantia do suprimento e da negociação de preços.

¿A discussão sobre o preço do gás deve dar-se num marco racional e eqüitativo que viabilize os empreendimentos¿, diz um trecho da declaração, que reforçou a necessidade do aprofundamento dos diálogos bilaterais.

Para mostrar que, apesar das pendências, os países da região continuam unidos, Lula, Chávez e Kirchner convidaram formalmente a Bolívia para participar do projeto de construção do gasoduto que cortará toda a América do Sul, com cerca de dez mil quilômetros. A obra já vinha sendo negociada por Brasil, Argentina e Venezuela.

¿ O Evo disse sim ¿ afirmou Chávez, lembrando que em agosto deve ocorrer uma cúpula de presidentes, em Caracas, para o lançamento do projeto.

Tentando juntar os cacos da integração regional, o presidente Lula defendeu a importância de manter a unidade da América do Sul, sob o argumento de que os países precisam mostrar aos investidores que continuam firmes em seus propósitos. Sem isso, afirmou, a região não passará à comunidade internacional a confiança necessária.

Lula rebateu ainda as críticas que vem recebendo, por ter reconhecido a soberania boliviana na nacionalização das reservas naturais.

¿ Não sei qual a solução concreta que os críticos desejam ¿ disse o presidente. ¿ Se não pensarmos grande e não tivermos unidade na América do Sul, não passaremos confiança a ninguém.

O dia começou com um encontro entre Lula e Kirchner. Preocupados com a questão do preço do gás, eles queriam afinar o discurso, tendo em vista que são compradores do produto e precisam garantir o abastecimento. Pouco antes do meio-dia, Chávez e Morales chegaram juntos ao Hotel Cassino, local da reunião.

¿ Existem tensões internas, mas confio na grandeza política dos líderes ¿ disse Chávez, ao chegar ao local da reunião.