Título: CHEGA DE PERSEGUIÇÃO
Autor: JOÃO UBALDO RIBEIRO
Fonte: O Globo, 07/05/2006, Opinião, p. 7

Ainda aturdido pela notícia da greve de fome do governador Garotinho, por culpa da imprensa, cheguei a pensar em mandar-lhe um e-mail, junto com uma quentinha do famoso filé Agostinho confeccionado pelo prestigioso boteco Tio Sam, oferecendo este espaço aqui para que ele faça sua defesa. Ocorreu-me, contudo, que não só este espaço não dá nem para começar a defesa, como nunca falei dele, ou mesmo nele, se bem me lembro. Portanto, de minha parte, trago a consciência leve, não tenho nada a ver com os terríveis pesadelos que Sua Excelência certamente virá a sofrer, entre hambúrgueres salazes, quibes fesceninos e empadinhas satânicas.

Isso não me impede, contudo, de partilhar da culpa coletiva da imprensa em tudo o que vem acontecendo. Continuo na humilhante situação em que o jornal nem sequer se dá ao trabalho de me notificar da conspiração de que faz parte, nem se digna a me falar nada, dar um telefonema, enviar um bilhetinho, nada. O ego do sujeito sofre um pouco, deve ser discriminação, porque eu sou nordestino e, pior ainda, baiano. Mas, como sabemos, líderes políticos não mentem e então a imprensa ¿ como, aliás, me dizem desde os tenros anos em que virei jornalista ¿ é de fato responsável pela maior parte do que de mau acontece a ¿este país¿.

Chega a ser monstruoso, esse negócio. Leio aqui, por exemplo, que, falando sobre a greve de fome do governador Garotinho, o presidente ironizou o grevista, dizendo que, se ele, presidente, fosse ligar para o que diz a imprensa, ¿seria natimorto¿. Está aqui escrito; se é mentira, é lá deles. Ele seria natimorto. Quer dizer, a imprensa e as elites já o estavam bombardeando antes mesmo de ele nascer. Sorte é que ele, da mesma forma que a senhora mãe dele, nasceu analfabeto e não se expôs à nossa ação deletéria. Do contrário, natimorto. Não é graça o sujeito ser tão perseguido pela imprensa que não chegue nem a nascer. Essas elites de direita da qual a imprensa faz parte são capazes de qualquer coisa, até mesmo de provocar desunião entre os irmãos da grande fraternidade latino-americana. Ai, Deus do céu, vai começar tudo de novo, o antiimperialismo como doença infantil de nacionalismos e populismos irracionais e o nosso governo, que, curiosamente, se proclama tão de esquerda, tendo que defender posições contrárias à, digamos, ideologia de seu partido. Chato lembrar que países não são gente e não têm amigos, têm aliados, assim como não têm amizades, têm interesses.

Portanto, o mínimo que se pode esperar da imprensa é que cumpra seu devido papel, ou seja, apoiar o governo e tratar de frivolidades. Sim, claro, há diversos assuntos palpitantes, alguns dos quais, se bem observados, úteis para o próprio governo. Li num jornal que um cidadão corneado pela esposa pediu e ganhou indenização. Até que enfim, valoriza-se uma categoria tão vasta, injustiçada e mesmo marginalizada. Estendendo-se esse direito às cornas (sei que há quem advogue que corna não existe, mas sou igualitário e, além disso, deslavado puxa-saco das mulheres), pensem em toda a economia que se desenvolverá em torno da novidade.

¿ Você já soube? ¿ dirá um amigo a outro. ¿ O Fontoura pegou a mulher com dois amigos dele! Dois ao mesmo tempo!

¿ Cara, mas isso é corno pra mais de cem mil, pode botar aí duzentinhos. A mulher do Fontoura tem grana.

Claro que rapidamente o governo perceberia o potencial dessa nova atividade e a retiraria da informalidade, como vem fazendo com notável eficiência no resto da economia. Criar-se-ia, obviamente, a Contribuição Provisória (Permanente) sobre Indenização por Corneamento e incidiria imposto de renda sobre o pagamento recebido, embora o pagador não pudesse deduzir a quantia de suas próprias despesas, pois não se vai criar incentivo fiscal à cornitude (pensando bem, risquem esta última observação: não tenho certeza). Certo, como em tudo mais haveria distorções. Imagino que alguns cornos se tornassem profissionais e se formassem redes de cornos e cornas para lavagem de dinheiro. Mas o Ministério Público está aí para isso mesmo, onde, aliás, prestará bem melhor serviço do que importunar políticos honestos que cometeram pequenos deslizes e já foram mais que perdoados, devendo alguns até ser premiados em breve.

Falemos também no progresso ocorrido no Rio de Janeiro, onde as mulheres têm vagões separados só para elas. Achei chiquíssimo, assim meio talibã, muito radical mesmo, vai bombar. Talvez seja este o primeiro passo para proibir as mulheres de sair desacompanhadas de parentes ou mostrar o rosto e cabelos em público. Não entendi bem ainda como faz um casal que esteja tomando o trem junto. Tem que separar. Deve ser romantismo do legislador, prevendo reencontros arrebatados, depois de uma longa viagem de metrô em regime de separação de corpos. Achei avanço mesmo, muito educativo, embora o vício da imprensa não possa calar-me uma pequena crítica: as outras opções sexuais não foram levadas em conta. Dessa maneira, adianto como sugestão construtiva que seja gestado pela Câmara de Deputados, ou senão por Medida Provisória mesmo, que é o método preferencial nas democracias, um bem-elaborado sistema de cotas, sem esquecer minorias habitualmente negligenciadas, como, por exemplo, os anões ¿ perdão, verticalmente prejudicados¿-, os fanhos, os vesgos, os banguelas e tantos e tantos outros excluídos.

Enfim, chega de perseguição e de ficar fazendo ¿ não é isso? ¿ o jogo da direita neoliberal. Deixemos a tarefa para governos de esquerda, como o nosso e o dos nossos irmãos bolivianos.

JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.