Título: É muito forte ver isso¿, diz alemão após visitar senzala
Autor: Ricardo Kotscho e Hélio Campos Mello
Fonte: O Globo, 07/05/2006, O País, p. 16

Construída no século 18, área dos escravos no porão da casa-grande foi preservada e há quatro anos recebe turistas, a maioria deles europeus

REDENÇÃO (CE). Um grupo de 28 turistas poloneses fica chocado com o que vê no Museu Senzala Negro Liberto instalado há três anos no antigo Engenho Livramento, que fabrica a cachaça Douradinha desde 1873, então ainda pelos 50 escravos da fazenda, agora exportada para a Europa.

¿ É muito forte para mim ver isso ¿ comenta em alemão o empresário polonês Gorczynski Bogdan ao sair da senzala construída no século 18 sob a casa-grande da fazenda pelo senhor de engenho Semeão Telles de Menezes Jurumenha. Deve ter sentido a mesma coisa que eu ao visitar os escombros de um campo de concentração em Varsóvia durante a cobertura de uma visita do então presidente norte-americano Jimmy Carter à Polônia, em 1977.

Tomada por nuvens de morcegos, a senzala foi preservada pela família do atual proprietário, Hipólito Rodrigues de Paula Filho, e quase todo dia recebe excursões de turistas, a maioria europeus. Paga-se R$2 pela visita de uma hora, conduzida por um dos cinco guias do museu.

Paulo Henrique Silva Soares, de 18 anos, é o mais jovem. Filho e neto de lavradores que trabalharam no canavial do engenho, aprendeu sozinho, ouvindo histórias dos mais velhos. Com a ajuda de Elisabeth Bernardinelli, paulistana que há quatro anos acompanha a serviço da agência Heliance excursões de turistas estrangeiros e serve de intérprete, o guia vai explicando aos poloneses como funcionava a fabricação de cachaça.

Museu guarda peças de tortura

Bogdan fica encantado com o primeiro engenho industrial instalado na Fazenda Livramento, em 1913, 30 anos após a libertação dos escravos de Redenção. É uma máquina inglesa movida a vapor, importada da Fawcett Preston, de Liverpool, que agora descansa ao lado dos três tonéis de 20 mil litros cada onde é envelhecida a Douradinha.

Mais adiante, no Memorial da Liberdade, estão expostos documentos da compra e venda de escravos, e a cópia da carta que declarou livres todos eles, ao lado de instrumentos de tortura como o viramundo, algemas de ferro que prendiam mãos e pés. Tem até um aparelho utilizado para extrair dentes e seios das escravas mais bonitas ¿ por ordem das sinhás que sentiam ciúmes de seus maridos e filhos. Segundo ele, só tem uma peça igual a esta no Museu de Medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Sem janelas, com pé-direito baixo, que diminui à medida em que se caminha para os fundos, até chegar a 80 centímetros, o cenário da senzala é assustador. Como conseguia alguém sobreviver ali?, perguntam os turistas ao guia, enquanto tentam espantar os morcegos. Conta ele que, normalmente, as senzalas ficavam afastadas da casa-grande, mas essa foi construída no porão por economia e para permitir maior controle dos escravos. Eles tinham que entrar em silêncio e eram proibidos de cantar. Permanecem intactos o tronco onde os escravos eram punidos a chibatadas e a solitária cravada na parede em que não é possível a um adulto ficar em pé.

Sem ajuda oficial, o museu, que recebeu mais de dez mil visitantes, é mantido graças ao empenho da diretora Eneida Rodrigues, filha do proprietário do engenho, e de Valéria Muniz, cunhada dele e autora da ¿reflexão crítica¿ afixada numa parede do Memorial da Liberdade: ¿Negros e pobres são tratados de forma desumana em nosso país. A lei é a mesma para todos? Será que existe um novo escravismo disfarçado? A mentalidade escravocrata sobrevive?¿. As duas bancam um curso de inglês para os guias.

Eneida, de 29 anos, foi mais uma das vítimas da chegada do ¿progresso¿ das grandes cidades a Redenção. Faz um ano, às sete da noite, estava sozinha em casa com a filha de 2 anos e a babá, quando dois assaltantes armados chegaram e renderam a mãe dela na garagem. O pai, o irmão, cada um que chegava era feito refém. O museu agora fecha às cinco da tarde, hora em que a família de Eneida se recolhe para dentro de casa como os outros moradores da cidade.

Se quisessem conhecer um descendente de escravos, os turistas teriam dificuldades. É preciso andar bastante até encontrar Francisco Bibiano da Silva, de 49 anos, o Neguinho, bisneto de escravos da Fazenda Gurguri, que mora a 12 km do centro de Redenção.

¿ Sou filho natural de lá mesmo da Fazenda Gurguri, mas vim para a cidade com 15 anos ¿ conta Francisco ao voltar para sua casa, na Rua 13 de Maio, esquina com Castro Alves, depois da jornada de trabalho num roçado que cultiva num canto do Engenho Livramento, onde lhe emprestaram um pedaço de terra para plantar.

De lá ele traz milho, feijão, jerimum e maxixe com que alimenta a mulher, quatro filhos e uma neta. Ninguém na casa já teve carteira assinada.

¿ O que mandam fazer a gente faz ¿ conta Neguinho, conformado com os R$10 que recebe de diária nos canaviais.

¿Ouvi histórias, mas não gravei¿

Com um sorriso de poucos dentes, o bisneto de escravos acha graça quando perguntam sobre seus antepassados.

¿ Não era do meu tempo... Ouvi muita história da minha mãe que ela ouviu da mãe dela, mas não gravei na memória. Gostava quando ela cantava os benditos, mas eu não sei, não.

Mesmo sem ajuda do governo, Neguinho acha que ¿as coisas estão melhorando no Brasil porque ficou mais fácil comprar coisas¿. Conformado com o destino, de nada se queixa.

Outro remanescente das famílias de negros escravos mora na última casa da cidade. ¿O Negão?¿, indagam no bar onde pergunto por Patrocínio, filho de Carlos, que veio da Bahia com os pais, escravos libertos trazidos pela família Bezerra.

Às quatro da tarde de um dia de semana, José do Patrocínio Silva, de 40 anos, dorme na rede e se assusta com a nossa chegada. Aposentado por problemas de saúde pelo INSS, Patrocínio só fala por monossílabos.

¿ Não sei quem foi não ¿ vai cortando a conversa quando lhe pergunto sobre seu xará, o líder abolicionista.

No folheto produzido pela Secretaria de Cultura, Turismo e Meio Ambiente de Redenção e distribuído no outro museu da escravidão mantido pela prefeitura na cidade, lê-se que a Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição foi construída em 1868, no tempo dos escravos. O que o folheto não conta é que a secretária de Cultura exerce um trabalho, digamos, pouco usual para o seu cargo.

Até o celebrado dia 1º de janeiro de 1883, os escravos negociados eram amarrados na praça, nos troncos de pés de tamarindo. A última tamarineira resistiu até 2000. No jardim que envolve a igreja, encontramos dois funcionários carpindo o mato, um homem e uma mulher. A mulher, de cabelos presos, blusa florida, calça arregaçada, havaianas e enxada nas mãos, muito simpática, interrompeu o trabalho e abordou o fotógrafo. ¿É o senhor que está fazendo reportagem sobre a Abolição?¿.

Secretária capina a praça

Ao ouvir a resposta afirmativa, emendou com um sorriso:

¿ O senhor não vai acreditar, mas eu sou a secretária de Cultura, Turismo e Meio Ambiente de Redenção.

Diante da surpresa do repórter, explicou que estava carpindo o jardim ¿porque alguém precisa fazer isso¿ e que a secretaria não tem pessoal suficiente para cuidar das praças.

Terezinha Lisieux relutou até permitir ser fotografada com a enxada. Professora, mãe de três filhos que moram em Fortaleza, disse que, apesar de não sentir vergonha, mas orgulho do trabalho que estava fazendo, é vaidosa, e não queria ¿aparecer mal vestida no retrato¿.

Na saída de Redenção para Fortaleza, na margem direita da Rodovia do Algodão, esconde-se um pedaço da história recente. Um caminho de três quilômetros de terra batida leva ao Assentamento 24 de Abril, um dos mais antigos do Ceará. Em 1997, no dia que deu nome ao lugar, 160 pessoas organizadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Acarape invadiram a Fazenda Boqueirão ¿ e 20 famílias permanecem lá até hoje.

Na casa de Jeová da Silva Salles, de 44 anos, líder do assentamento, moram 12 pessoas. Para mantê-las, além do Bolsa Família do governo federal e do que lhe cabe na venda das 40 toneladas da cana-de-açúcar colhidas pelos assentados, ele trabalha 12 horas por dia na lavoura de arroz, feijão, milho e mandioca ¿ dieta que não mudou desde o fim da escravidão.

Ao lado da mulher, Maria Ferreira da Silva, de 42 anos, e dos dez filhos com idades entre 1 e 21 anos, não tem grandes sonhos na vida.

¿ Somos escravos livres sem algemas nos pés. Tenho liberdade para ir de um lado pra outro. Mas que jeito? Como, para onde? Antes, os escravos trabalhavam para comer. E hoje como é? ¿ pergunta, e ele mesmo responde. ¿ É a mesma coisa... Mas está bom assim. Deus é maravilhoso ¿ diz ao se despedir.

Depois do trabalho, ele vai com a família ao templo da Assembléia de Deus onde é pastor. A casa de Jeová tem televisão, mas ninguém assiste.

¿ Não presta a danada. Vive queimando sozinha.