Título: Redenção, terra onde a liberdade chegou primeiro
Autor: Ricardo Kotscho e Hélio Campos Mello
Fonte: O Globo, 07/05/2006, O País, p. 16

Cidade do interior do Ceará que aboliu a escravatura cinco anos antes da Lei Áurea tenta vencer a violência e atrair turistas para vencer o marasmo econômico

REDENÇÃO (CE). Existe uma cidade no Brasil onde a escravidão foi abolida sem choro e com muita festa cinco anos antes da promulgação da Lei Áurea. O nome dela é Redenção, abriga 25 mil habitantes em 225 quilômetros quadrados e fica no norte do Ceará, junto ao Maciço do Baturité, a apenas 66 quilômetros de Fortaleza. Chega-se até lá pela Rodovia do Algodão (CE-060), beirando uma estrada de ferro desativada e passando por fábricas e usinas abandonadas onde o mato cresce subindo pelas chaminés estranhamente construídas em linhas retas.

¿A liberdade aconteceu aqui¿, proclama o portal do Museu Senzala Negro Liberto, na entrada da pequena cidade povoada no sopé da serra nos tempos do Império, que ainda sobrevive de lembrar os acontecimentos de 1º de janeiro de 1883 ¿ quando os últimos 116 escravos foram libertados por seus senhores ¿ agora na esperança de atrair turistas para espantar a pobreza e o marasmo econômico.

Uma cidade atrás das grades

Para entender razões e caminhos desta façanha pouco conhecida da história, às vésperas da celebração de mais um 13 de Maio, o melhor é andar pelas estreitas ruas batizadas com os nomes dos heróis da Abolição. Como viverão hoje os orgulhosos moradores da antiga Vila do Acarape, no centro da planície cortada pelo Rio Pacoti, onde a liberdade chegou antes no país que foi um dos últimos do mundo a acabar com a escravidão?

Vivem, literalmente, atrás das grades. Com medo dos assaltos e da violência que nos últimos anos migraram da área metropolitana de Fortaleza para as cidades menores, na hora em que as rádios anunciam a Ave-Maria e o sol se deita por trás das montanhas, cadeiras de plástico começam a ser recolhidas para dentro das casas cercadas de grades por todos os lados.

É a hora em que Raimundo Franco Pereira, de 74 anos, cerra as pesadas portas de ferro da Farmácia Santa Rita e passa a atender a freguesia pelas frestas das grades. A farmácia fica na Praça da Matriz, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, cercada por grades de ferro com três metros de altura que protegem a imagem do Cristo crucificado.

¿ Parece uma cidade-escritório. Abre às oito da manhã fecha às seis da tarde ¿ diz o farmacêutico, que apesar disso nem pensa em deixar a cidade. ¿ Nasci aqui, vou morrer aqui.

Redenção ainda vive da cana-de-açúcar vendida a usinas como a Ypioca, tradicional marca de aguardente; de plantações de frutas, como manga e banana, e lavouras de subsistência, mas a principal fonte de renda é a aposentadoria dos idosos. O índice de analfabetismo entre maiores de 15 anos é muito alto (30,05%, média nacional 13,63%). Só 53% das casas estão ligadas à rede de água e 80% delas não têm ligação de esgoto. A taxa de mortalidade infantil foi zero em 2003, mas é alta a incidência de doenças do tempo da escravidão, como tuberculose (15,57%), hanseníase (11,29%) e a de Chagas (oito casos em março).

Até cinco anos atrás, os moradores dormiam de portas e janelas abertas, ficavam até tarde conversando nas calçadas. Delegado de Redenção há dois anos, depois de rodar pelo interior cearense, José Ribamar Gomes Lemos reconhece que pouco pode fazer para defender a cidade assustada. Conta com cinco inspetores de polícia, dois escrivões e uma Parati 1999 que já está quase entregando os pontos. Não consegue nem impor a lei seca que decretou ao chegar à cidade, ordenando o fechamento dos bares após as 22h.

¿ Vou fiscalizar como?

Lemos atribui aos problemas de falta de habitação na área metropolitana à inversão do fluxo migratório ¿ para ele, a principal causa do drama enfrentado na segurança.

¿ Antigamente, tínhamos êxodo do interior rumo às capitais. Agora acontece o contrário. Por falta de moradias ou porque o aluguel ficou alto, moradores da periferia de Fortaleza e de Maracanaú (distrito industrial) transformaram cidades menores em dormitórios e trouxeram com eles mazelas urbanas.

O tráfico de drogas se instalou rapidamente na Boa Fé, no Pirambuzinho e no Alto da Santa Rita, pequenas favelas que brotaram em anos recentes. Apesar da franciscana falta de recursos, o delegado se gaba de ter ¿mandado uns 35 elementos para a cadeia¿, 20 ¿por causa de droga¿. Dez ladrões pegos em flagrante eram ¿de fora¿, garante.

Passar três dias em Redenção é como viajar ao Brasil colonial e dar de cara com um cenário de subúrbio de grande cidade do Brasil do terceiro milênio convivendo com ruínas das senzalas e instrumentos de tortura dos tempos da escravidão. O passado e o presente convivem mal aqui, como se viu no último domingo de Páscoa. Pela primeira vez, não chegou até o fim a tradicional romaria em que os penitentes sobem a escadaria de 500 degraus morro acima por trás da Igreja de Santa Rita até o Santuário de Nossa Senhora. Os fiéis seguidores da maconha, alguns deles nus, simplesmente não a deixaram passar, e a romaria teve que dar marcha-ré.

A um quarteirão da delegacia, recolhida ao quarto de dormir por problemas de saúde, a professora Ladeisse Silveira, de 64 anos, não esconde a tristeza:

¿ Como pode acontecer uma coisa dessas? Onde estão os políticos, a polícia? ¿ pergunta.

Se ¿essa terra tem história¿, como gostam de dizer os moradores mais antigos, Ladeisse é a ¿dona da história¿ de Redenção ¿ uma saga do Brasil profundo que ela guarda na cabeça e está começando a pôr no papel. Embora só tenha lecionado por seis anos, cinco sem receber salário, a professora nunca parou de estudar e pesquisar a história da cidade. Foi ganhar a vida como funcionária da prefeitura. Como não encontrou o passado nos livros, saiu a campo ¿para conversar com os mais antigos¿.

Escravos de ¿segunda mão¿

Na Redenção de 2006, pode-se andar horas pelas ruas sem cruzar com um único negro. Ladeisse explica: os negros libertos de Redenção eram ¿escravos de segunda mão¿, ou seja, vinham para o Ceará comprados de senhores de outros estados, em especial da Bahia, da Paraíba e do Maranhão. Livres, foram ao encontro dos parentes noutras cidades brasileiras.

Pergunta que sempre fazem a dona Ladeisse é por que Redenção se tornou a primeira cidade a libertar seus escravos, 15 meses antes do restante da então Província do Ceará, e cinco anos antes de ser proclamada a abolição da escravatura. Ela dá ao repórter um texto em que resumiu seus 40 anos de pesquisa.

Sob o título ¿História Sucinta da Cidade de Redenção¿, situa o início do movimento abolicionista na região em 1868, ano em que o povoado de Acarape (¿caminho dos peixes¿ em tupi-guarani) foi promovido à categoria de Vila pelo presidente da província, Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo. No mesmo ato, ele autorizou a vila a gastar 15 mil réis ao ano ¿em campanhas para libertar escravos especialmente do sexo feminino¿.

Vários fatores confluíram para a criação da Sociedade Redentora Acarapense, em dezembro de 1882. No ano anterior, o líder dos jangadeiros, Francisco José do Nascimento, o célebre ¿Dragão do Mar¿, impediu o desembarque de novos escravos no porto de Fortaleza. Como o porto era de baixo calado, o transporte entre os navios ao largo e a terra só podia ser feito em jangadas. Ao se recusar a transportá-los o líder jangadeiro provocou o fechamento do comércio de escravos e abriu caminho para a luta abolicionista.

O cultivo da cana já estava sendo substituído pela pecuária, que dispensava o trabalho escravo. A seca que atingia o Ceará deixava os escravos sem ter o que fazer e onerava os proprietários. Com a construção da Estrada de Ferro de Baturité, que ligava a região a Fortaleza, tornou-se mais fácil a comunicação entre os abolicionistas. Numa viagem a Fortaleza feita nesse trem Manuel Fernandes Correia de Araújo, escrivão das rendas gerais em Acarape, acabaria tendo papel decisivo para a luta organizada pela Sociedade Redentora Acarapense, dirigida por Gil Ferreira Gomes.

Na capital, ele viu o avanço do movimento abolicionista e, ao voltar, comunicou o que vira ao coletor Joaquim Agostinho Fraga. Ambos transmitiram ao coletor provincial Antonio da Silva Matos a intenção de fazer algo em defesa dos escravos.

¿ Matos alforriou os três escravos que possuía. Seu exemplo seria imitado por outros senhores. Até a concretização do plano abolicionista foi um rápido passo ¿ conta a professora, que relata como foi a ¿celebração da alforria¿, há 124 anos:

Às sete horas da manhã de 1º de janeiro de 1883, uma segunda-feira, partiu de trem saindo de Fortaleza para a Vila de Acarape uma comitiva de ilustres abolicionistas (entre eles, José do Patrocínio). O comboio, repleto de flores, música e perfumadas damas, chegou à estação do Cala Boca às dez e meia da manhã.

O primeiro senhor de escravos que se apresentou à mesa para alforriá-los foi o coronel Francisco Benvindo de Vasconcelos, cujo desvelo pela causa da libertação expressou nestes termos: "A maior mancha de minha vida foi ter sido senhor de escravos".

Coveiro João, o mais animado

Além dos Vasconcelos, a historiadora destaca a participação das famílias Sena, Holanda e Nogueira na luta antiescravagista. Em 17 de agosto de 1889, pouco antes da Proclamação da República, a Lei 2.167, uma das últimas dos tempos do Império na Província do Ceará, elevaria a Vila do Acarape a cidade com o nome de Redenção, em homenagem à Princesa Isabel, a ¿redentora dos escravos¿.

Daquele tempo restam apenas os nomes dessas famílias nas lápides do Cemitério Senhor do Bonfim, cuidadosamente zelado pelo coveiro João Neves Rodrigues, de 58 anos, que herdou o ofício do pai, e há mais de 30 anos cuida do lugar.

¿ Conheço cada túmulo, todas as famílias enterradas aqui. Tem um aqui de 1860, que ainda é do tempo da escravidão. Enterrei aqui outro dia a dona Lurdes, ali fica o Chico do Cazuza, é tudo gente que já morreu.

Homem mais animado da cidade, ele só reclama do salário, ¿300 reais com menos 46 de desconto¿, e que ainda por cima está sem receber faz dois meses.

¿ Trabalho muito. Enterro, desenterro, faço de tudo. Vem ver onde está meu pai, junto da minha mãe e do meu filho, olha o salão de festas que fiz aqui. O mais bonito vai ser o meu, aqui no lugar de um que morreu em 1907, que não tem mais dono.

Depois de contar um pouco da história dos que enterrou, vai fechar o portão de ferro. Às seis da tarde, hora da Ave-Maria, até os mortos de Redenção ficam protegidos atrás de grades.