Título: Medo de perder terras na Bolívia
Autor: Chico Otavio e Flávia Oliveira
Fonte: O Globo, 07/05/2006, Economia, p. 35

Produtores brasileiros investiram quase US$1 bi e temem reforma agrária de Morales

Anacionalização radical do petróleo e do gás na Bolívia deixou assombrado um grupo de brasileiros que, estabelecidos naquele país, nada têm a ver com a indústria energética. São os produtores de soja, que desde o início da semana temem a desapropriação de suas terras, ato que comprometeria investimentos de quase US$1 bilhão feitos no agronegócio ao longo da última década e meia. No discurso do 1º de Maio, em que anunciou a estatização, o presidente Evo Morales disse que aquele era o dia do gás e completou: ¿amanhã serão as florestas, as minas e as terras¿. Foi a senha que tirou o sono dos brasileiros que, instalados no departamento (estado) de Santa Cruz de la Sierra, respondem por 35% do segundo item mais importante da pauta de exportações bolivianas.

¿ Estamos muito preocupados. Se realmente acontecer algo, gostaríamos de saber qual será a atitude do governo brasileiro em nosso apoio. Vivem nos ameaçando ¿ reclama o produtor paranaense Jair Mezzomo, há nove anos na Bolívia.

¿ O governo diz que vai respeitar as propriedades agrícolas produtivas. Mas foi o mesmo (governo) que chegou a dizer que não iria nacionalizar as reservas de gás. Nosso sentimento é de apreensão. Não sabemos como será o governo radicalizar no campo ¿ completa o produtor Denis Barbieri.

Ele é dono da Agrícola Santa Clara, que ocupa 5.500 hectares em Santa Cruz e fatura US$4 milhões por ano com seus 4.500 hectares de área plantada. O empreendimento, instalado há dez anos, tem 70 funcionários. Apenas um não é boliviano.

Os ruralistas brasileiros começaram a chegar à Bolívia no início dos anos 90, atraídos por solo fértil, clima favorável e, principalmente, baixos custos de produção de soja na região de Santa Cruz, vizinha a Mato Grosso. Diferentemente do cerrado, os terrenos no pé da serra boliviana quase não necessitam de adubo. Além disso, a estrutura tributária torna o investimento de 35% a 40% mais barato do que no Brasil, conta Jesús Grecco, sócio-gerente da Agropecuária San Diego. Também há nove anos na Bolívia, Grecco administra uma área plantada de três mil hectares e emprega 35 bolivianos e dois brasileiros:

¿ Quando se candidatou, Morales prometeu nacionalizar petroleiras, siderúrgicas e estradas de ferro e fazer a reforma agrária nos latifúndios. Nós, brasileiros, somos produtores, não somos latifundiários. Qualquer ato radical seria um retrocesso. Mas se ele mexeu com a Petrobras e o governo brasileiro não fez nada, estamos nos sentindo sem pai nem mãe ¿ diz Grecco, que teme ainda o acirramento dos conflitos com o movimento dos sem-terra indígenas.

Apontado como o maior exportador brasileiro no país e diretor-secretário da Associação Nacional dos Produtores de Soja da Bolívia, Nilson Medina é mais cauteloso:

¿ Tudo isso está muito politizado. Que vai haver reforma na Lei das Terras é fato. Mas já foi pactuado entre os presidentes Lula e Evo que os brasileiros não serão molestados. O próprio ministro boliviano da Agricultura, Hugo Salvaterra, confirmou a intenção.

As palavras de Medina, porém, não expressam o sentimento dos produtores. Desde a campanha eleitoral, quando Morales dizia que as terras do país pertenciam aos bolivianos, os brasileiros se movimentam em busca de garantias de que não sofrerão expropriação ou outros atos unilaterais. Já cobraram apoio do embaixador brasileiro em La Paz, Antonino Mena Gonçalves, e do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues.

¿ Estamos conscientes das intenções de Evo desde a campanha eleitoral. Mas acreditamos que os que trabalham, fazendo de suas propriedades terras produtivas, não têm com que se preocupar ¿ afirma Donizete Fernandes, dono de uma propriedade de dois mil hectares em Santa Cruz.

Medina conta com orgulho que, quando chegou à região, em 1992, só havia disponíveis terra e energia elétrica. Ex-funcionário de uma multinacional, ele decidiu tentar a sorte na nova fronteira agrícola. Após derrubar a mata, abrir caminhos, construir armazéns e silos, transformou-se num dos maiores produtores do país.

¿ Muitos brasileiros fizeram o mesmo e atingiram seus objetivos. De repente, veio o Evo ¿ desabafa Medina, para em seguida recuperar a linguagem diplomática que sua posição de líder exige. ¿ Tudo continua bem. Há um acordo político entre Lula e Evo. Continuaremos a investir na Bolívia.

Menos cauteloso, Jair Mezzomo revela que, na sexta-feira, houve uma reunião entre os produtores brasileiros para discutir o risco Morales:

¿ Fico sem saber o que dizer quando ouço o presidente da Bolívia defender apenas os indígenas. Isso gera um preconceito perigoso. Temo que os brasileiros paguem por isso.

Os produtores brasileiros estão radicados num departamento onde Morales não tem tanta força política. Embora tenha vencido as eleições com 56% dos votos válidos, em Santa Cruz ficou com aproximadamente 30%. Seu partido, o MAS, elegeu apenas um vereador. Ao contrário da capital, La Paz, cidade a 3.600 metros de altitude e de maioria indígena, o departamento fica nas terras baixas e tem expressiva parcela da população formada por descendentes de espanhóis.

Para defender seus interesses, os brasileiros alegam que já estabeleceram raízes na Bolívia. Alguns misturam o português com espanhol quando conversam com brasileiros. Medina, que tem filhos e cidadania bolivianos, estima que as terras dos brasileiros representam 35% do quase meio bilhão de dólares que a produção de soja movimenta na Bolívia. Também respondem pelo mesmo percentual dos 150 mil empregos gerados.

¿ Por esses motivos, estamos confiantes de que Evo nos tratará na melhor forma possível ¿ diz.

Ricardo Antonio Cambruzzi, presidente da Fundação de Desenvolvimento Agrícola Santa Cruz (Fundacruz) e executivo da Sementes Mônica, é outro que se declara confiante numa solução amistosa. Ele está na Bolívia há 15 anos, tem sócios locais e emprega 350 pessoas (30 são brasileiros).

¿ No nosso setor, estamos acreditando neste novo governo. Nas muitas oportunidades em que estivemos reunidos, eles nos mostraram a importância da produção agrícola para o desenvolvimento da Bolívia. É um setor muito importante, porque gera empregos e proporciona estabilidade na economia.

(*) Enviado especial

REFORMA AGRÁRIA COMEÇARÁ POR LATIFÚNDIOS DE RICOS,