Título: O DONO DO ESPETÁCULO É O BANQUEIRO CHÁVEZ
Autor: BERILO VARGAS
Fonte: O Globo, 10/05/2006, Opiniao, p. 7

Aquelas mãos entrelaçadas em Puerto Iguazú decidem nossos destinos ¿ o seu, o meu, o do subcontinente. Quem viu a foto não esquece. Da esquerda para a direita, as mãos amontoadas são de Néstor Kirchner, da Argentina, Evo Morales, da Bolívia, Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Hugo Chávez, da Venezuela. Juntos numa pose para o álbum de família da América Latina, imagem enternecedora de fraternidade continental.

Difícil dizer quem está mais à vontade. Todos sorridentes, como é de regra num encontro de amigos. O mundo precisa saber que a amizade de camaradas de armas sobrevive a intrigas e mal-entendidos de ocasião. Detalhe revelador: os novos astros da constelação latino-americana têm os olhos semicerrados, como se protegessem a vista da intensa luz que emana de todos e de cada um.

Mas nada tem a eloqüência alegórica das mãos entrelaçadas. Kirchner, Morales, Lula e Chávez juntam as mãos num gesto inequívoco de solidariedade mosqueteira. Nem o Império do Norte poderá deter o inexorável processo de integração ideológica por eles posto em marcha. Se nos deixarmos levar por quem sabe mais do que nós ¿ e quem sabe mais do que eles? ¿ um dia seremos ricos e felizes, lá onde o Sol nunca se põe.

Se assim fosse, que bom seria. Mas a imagem comovedora encobre mais do que revela. Enquanto as oito mãos se entrançavam com vigor em Puerto Iguazú, ali perto Tabaré Vázquez ameaçava se desligar do porto inseguro do Mercosul. Por mais caloroso que seja o aperto de mão de Kirchner, sua beligerância nacionalista, posta acima dos interesses multinacionais do Mercosul, atiça a guerra das papeleras com o Uruguai, e abala os alicerces do mais bem-sucedido bloco regional. O grito de guerra das Malvinas voltando-se contra um vizinho e irmão de sangue.

Morales, todos sabem, é o pivô da manifestação de solidariedade. Antes de abrir as mãos para os amigos em Puerto Iguazú, cerrara os punhos contra a Petrobras e outras empresas de energia que transformam em riqueza os recursos do subsolo da Bolívia. Morales já anunciou que está passando a tranca na porta para proteger os bolivianos dos cães de guerra que chegam, até mesmo do amistoso Brasil, para espoliar o país! A bofetada como tática de integração.

A tática de Lula é a empatia cristã ¿ uma face dividindo a dor do insulto com a outra face. Sobre-humano prodígio de compreensão, ele compreende mais que Morales as razões de Morales para enviar tropas às refinarias da Petrobras e alterar os preços coercitivamente, manu militari. Nenhuma reinação do mano caçula lhe tirará o humor benigno de pai dos pobres do continente. E, convenhamos, não é que o menino traquinas da Bolívia está certo? Pois não dizem os assessores do Planalto que a Petrobras já ganhou dinheiro de sobra com o gás boliviano e é hora de deixar algum para os donos da terra?

Da esquerda para a direita, o último do grupo é Chávez. Nos bastidores da cúpula de Puerto Iguazú, entre uma anedota e outra sobre a inépcia política e o fígado vulnerável do imperador Bush, o venezuelano provavelmente mandava recados insolentes para o presidente Alejandro Toledo do Peru, e para os políticos peruanos em geral. Chávez, que não esconde suas simpatias pelo integrador regional Ollanta Humala, tenta influir nos destinos do Peru com insultos ao candidato Alan García. Esse não é dos meus! Esse não serve para os irmãos peruanos! As ofensas de lado a lado refletem o doce clima familiar que se alastra pela região. García chamou Chávez de vagabundo, e Chávez disse que vagabundo era García. A intromissão descarada como ferramenta de integração. Nesse ritmo, todos nós ¿ argentinos, brasileiros, peruanos, venezuelanos ¿ nos tornaremos de fato uma família insuportavelmente unida em nossas carências e misérias.

Na foto Morales parece o mais esperto: afinal, por um instante a América Latina girava em torno dele, de sua audácia de aimara nacionalista. Mas é ilusão passageira! Morales é só um correntista de banco com algum crédito na praça ¿ crédito esse que está tratando de malbaratar junto com o capital. O dono do espetáculo é o banqueiro Chávez ¿ o rei da integração energética. Os recursos que ele comanda jorram aos borbotões do subsolo venezuelano e ameaçam afogar a América Latina num mar de clientelismo populista. Agora é ele, e não Lula, quem dita as regras das relações de família na América Latina. Agora é ele, e mais ninguém, quem identifica amigos e inimigos do povo. Agora é ele quem, segurando as rédeas da História, separa bolivarianos de não-bolivarianos do Hemisfério para premiar e castigar.

Deve ser por isso que na foto de Puerto Iguazú as mãos de Chávez estão por cima das outras. As duas.

BERILO VARGAS é jornalista.

N. da R.: Elio Gaspari está em férias.