Título: A FOME DO PODER E O PODER DA FOME
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 10/05/2006, Opinião, p. 7

Agreve de fome do governador Garotinho vem se somar ao oceano de atitudes insólitas que têm inundado o cenário público brasileiro. Não sei que interpretações os historiadores do futuro irão realizar deste nosso momento. Às vezes penso que ele será lido como uma época de drástica mudança social com seus desmandos e enganos crassos; em outras imagino que será lembrado como um exemplo criminoso de incúria administrativa e de incapacidade de lidar com problemas e desafios dramáticos, com atores importantes brincando com fogo, mesmo quando os sintomas de desastre estavam à vista.

O fato é que, no contexto dos desmandos e das denúncias que infestam a nossa paisagem social, uma greve de fome é um gesto destoante. Ainda mais quando realizada por um político populista de sucesso, residente em palácio, local onde se come e bebe tanto simbólica, quanto praticamente. Testemunhar um homem do poder recusar voluntariamente alimento como forma de protesto numa sociedade que sabe bem (mas faz muito pouco) da vergonha que é ter famintos, é algo fora do comum. Se Garotinho fosse oposição ou líder de alguma facção política marginal, o gesto drástico da greve faria mais sentido. Num ex-governador, ex-secretário de Estado, marido de governadora e no candidato a candidato à Presidência por uma das maiores legendas nacionais, o gesto tem uma óbvia carga de exagero ¿ daquele exagero que, sendo a matéria-prima dos símbolos, é revelador do mundo em que vivemos.

O dado mais flagrante do gesto é a sua recusa a enfrentar os problemas pelas vias políticas rotineiras. Sabemos ¿ e este nosso Brasil do mercado e da estabilidade monetária que separou o político do econômico levou isso à exaustão ¿ que a forma mais comum de os políticos enfrentarem denúncias é pela simples negação dos fatos. Temos hoje no Brasil um governo que diz saber tudo o que o Brasil precisa para crescer, mas que paradoxalmente ignora tudo o que ocorreu na cúpula do seu partido bem dentro e debaixo do seu nariz. Tudo o que vem do outro lado tem, de acordo com a teoria do moderno denuncismo brasileiro, somente uma intenção: a de bloquear trajetórias vitoriosas, desestabilizar governos, inibir ou destruir candidaturas.

O que chama a atenção no gesto de Garotinho é a recusa a seguir o método usual. A gravidade da sua greve de fome, que para muitos cheira a mero oportunismo, seria a forma de retribuir o tratamento injusto que, segundo ele e seus aliados, a mídia lhe tem dispensado. O intrigante do fato, independentemente das várias leituras que ele tem comportado, é o incômodo risco que ele configura e determina. Pois uma coisa é usar o direito de resposta, mentir ou simplesmente denegrir ou sugerir mordaças para a imprensa; mas uma outra muito diferente é aprontar um projeto suicida de uma greve de fome como forma de protesto.

De qualquer modo, o gesto de Garotinho alinha-se tanto às pirraças das crianças quanto às exibições dos faquires, esses kafkianos artistas da fome que, dentro de esquifes de vidro, ganhavam uns magros dinheiros com a exibição pública com a sua renúncia da comida que se estampava numa aparência de alarmante fraqueza corporal. Há muito desses traços na greve de Garotinho.

Mas há também a manifestação imprevista do nosso universo social e político, em que um suicídio altruístico (de Vargas) e uma renúncia inesperada (de Jânio) mostram uma paisagem longe de conter apenas velhacarias.

Como integrar essa greve de fome num universo onde se acena a todo momento com o diagnóstico de uma normalidade modernosa a esconder uma séria convulsão institucional e uma profunda crise ética? Como entender que um palaciano de carteirinha, um político de feição populista, manipulador de eleitores e votos, entre nessa renúncia de comida, esse item sagrado para as sociedades cristãs? Essa fonte de perdição (fomos expulsos do Paraíso por uma comida, a maçã) e será a comida (no banquete eucarístico com Cristo) que promoverá a nossa salvação.

Num certo sentido, essa aproximação voluntária com a morte, esse gesto quixotesco porque desproporcional de protestar com as armas do suicídio virtual, talvez seja uma poderosa metáfora do ponto a que chegamos, e um símbolo de nosso mundo político e dos seus habitantes. Meu lado pessimista diz que tudo isso é teatro, mas não posso deixar de me questionar se esta greve não representa um desejo de renúncia dos nossos políticos. Todos, como Garotinho, desejosos de se autodestruírem pela fome. E assim invertendo a sua trivial fome de poder por um poder maior e mais pungente: o poder da fome que eles jamais pensaram em sentir. Poder das renúncias que mostram o fundo do poço.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.