Título: CRIMES AO PÉ DA LETRA
Autor: JORGE WILHEIM
Fonte: O Globo, 11/05/2006, Opinião, p. 7

Em assembléia dos sócios fundadores, realizada no Museu de Arte de São Paulo, formalizou-se a criação do Museu da Tolerância. O museu, embora mantenha sua autonomia, será construído no campus da Universidade de São Paulo. A importância da criação de uma instituição, por ora única na América Latina, dedicada ao estudo e à difusão da tolerância e da convivência com o diverso motiva-me a tecer comentários.

O filme ¿Crash ¿ No limite¿, ganhador do Oscar, evidencia dramaticamente um mundo de ¿todos contra todos¿, com múltiplas facetas de intolerância ao diverso. Embora o filme tenha qualidades intrínsecas, foi surpreendente a escolha dos votantes, na maior parte moradores de Los Angeles, em um mudo, porém óbvio, reconhecimento da situação dramática em que lá se vive. Contudo... não apenas em Los Angeles.

A Europa convive penosamente com a inevitável onda migratória, com setores da sociedade levantando barreiras contra qualquer processo de aculturação. E o mundo islâmico do Oriente Médio (árabe e persa) sujeita-se à dominação de clérigos conservadores, cuja postura anacrônica é posta a serviço da manipulação e da dominação política e social, freqüentemente sádica e machista, por parte de políticos no poder.

Outros filmes, como o israelense ¿Free zone¿, de Amos Gitai, e o palestino ¿Paradise now¿, de Hanny Abu-Assad, evidenciam criticamente posturas intolerantes que eternizam impasses, ou manipulam o rancor gerado pelos campos de refugiados, sob o pretexto de guerra santa de inspiração divina. Se, ao desconhecermos a evolução das sociedades e da cultura humana através dos séculos, fizermos uma leitura fundamentalista dos textos básicos das três religiões monoteístas (judaica, cristã e islâmica) e seus desdobramentos, chegaremos a anacrônicos absurdos.

No Velho Testamento, considerado revelação divina pelas três religiões, condena-se a sodomia e o adultério feminino e prescreve-se sua punição com morte por apedrejamento. Nestes antigos textos a relação entre homem e mulher reflete uma arcaica situação de dependência e uma visão da divisão de funções sociais que ainda deriva do neolítico. E seja na Bíblia, seja em textos leigos de épocas clássicas posteriores admite-se a existência de escravos.

Todos estes exemplos prestar-se-iam a uma interpretação fundamentalista, ao pé da letra, a serviço de interesses temporários, designando o inimigo como herege e autorizando que crimes sejam cometidos. Afinal de contas, as cruzadas medievais contra o Islã tinham a mesma bandeira anti-herética que o Islã hoje empunha contra o Ocidente: o inimigo está contra Deus e a letra do texto sagrado autoriza a matá-lo!...

No entanto, um conhecimento superficial de história e do desenvolvimento do pensamento humano, no campo das religiões, seria suficiente para lembrar, por exemplo, as alterações produzidas já ao tempo da ocupação romana na Palestina. Seja a pregação de Jesus (¿Jogue a primeira pedra quem está isento de pecado¿), sejam os textos do sábio Hillel (70 a.C.-10 d.C.) introduzem uma fundamental inovação nos antigos preceitos judaicos: a importância da compaixão, além da justiça. Escreveu Hillel: ¿Não faças a outrem o que não desejas que te seja feito: esta é a lei, o resto é conseqüência.¿ A História nos ensina o quanto a cultura islâmica já fez para a Humanidade.

Embora não se possa esquecer o contexto da história contemporânea no Oriente Médio, parece-me oportuna a manifestação de Wole Soyinka, prêmio Nobel de 1986: ¿Já é hora de líderes muçulmanos de todo o mundo proclamarem uma fatwa contra os que matam em nome de sua fé.¿ É de fato muito grave, como o foi a posição da Igreja nos séculos da Inquisição (XIII a XVI), a postura intolerante ou a omissão dos clérigos que permitem, quando não estimulam, que se mate e que se morra em nome de Deus. Para qualquer religião a vida humana é uma graça divina a preservar.

Não se deve limitar o tema da intolerância ao terrorismo. Inúmeros são em todo o mundo os casos de discriminação, perseguição e injustiça praticados contra indivíduos ou grupos. Da escravidão à Inquisição, do Holocausto à luta fratricida entre sunitas e xiitas. É certamente difícil, quando não perigoso, criticar ou opor-se à corrente majoritária quando líderes leigos ou religiosos invocam motivos políticos falsos ou a fé originados da leitura fundamentalista de textos sagrados ou da interpretação falseada da história, em benefício de seu grupo.

Esta é a situação em que, em maior ou menor grau, se encontram diversos países. Embora por vezes perigoso, é contudo necessário contrapor-se com coragem e veemência a todas as demonstrações de intolerância que rebaixam o ser humano.

O Museu da Tolerância será apenas uma pedrinha na vasta construção que devemos levantar contra a intolerância, sua origem e suas conseqüências, a estupidez, o atraso. Porém, se essa instituição receber o suporte social e financeiro que o tema merece, o Museu testemunhará de forma veemente um futuro de paz e tolerância, a favor da dignidade humana.

JORGE WILHEIM é arquiteto e urbanista.

N. da R.: Verissimo está em férias.