Título: A FARRA DOS DEPUTADOS COM COTA DE PASSAGENS
Autor: Maria Lima
Fonte: O Globo, 14/05/2006, O País, p. 12

Sobras não são devolvidas à Câmara; parlamentares bancam viagens para políticos, amigos, assessores e jornalistas

BRASÍLIA. Não é só a verba indenizatória de R$15 mil por mês que permite a deputados burlar regras e ter mais um salário indireto. Outra cota, que destina a cada deputado valores mensais que variam de R$4.147,10 (DF) a R$16.513,15 (RR) para viagens aéreas uma vez por semana a seu estado de origem, tem aumentado a capacidade de gastos do parlamentar e sido desviada para outra finalidade. A regra da Mesa da Câmara diz que o dinheiro é para cobrir passagens do parlamentar, mas a maioria usa grande parte dessa cota para pagar passagens para políticos, amigos, parentes, eleitores e até jornalistas.

O valor da cota de passagens aéreas varia. Os valores são calculados com base no preço da tarifa cheia e o último reajuste foi bem acima da inflação. Levantamento feito nos preços das três maiores empresas aéreas mostra que os parlamentares, além da farra da gasolina, fazem também uma verdadeira farra das passagens aéreas.

Dos R$66.373 milhões que a Câmara pagou ano passado com passagens aéreas dos 513 deputados, estimados R$24.994 milhões (38%) foram efetivamente gastos com compra de passagens para as quatro viagens ¿ de ida e volta ¿ a que cada um tem direito por mês. A maior parte, R$41.379 milhões, ou 62%, é dinheiro que poderia ter sido devolvido aos cofres públicos, mas bancou a compra de passagens distribuídas sem fiscalização.

Só 154 deputados devolveram dinheiro, mesmo assim valores inexpressivos. A devolução ano passado somou R$898 mil. Dos valores não utilizados, a maioria se refere a deputados que renunciaram e não puderam mais usar a cota.

Com base em denúncia publicada no jornal ¿Gazeta de Joinville¿, o procurador Davy Lincoln da Rocha, do Ministério Público Federal de Santa Catarina, investiga o deputado Paulo Bauer (PSDB-SC), flagrado sorteando passagens aéreas entre jornalistas. Numa festa no dia 28 de abril, ele comandou o sorteio que resultou em viagens para Brasília entre 30 de maio e 1º de junho.

Depois, em entrevista ao jornalista Ricardo Wegrzynovski, Bauer confessou que já distribuiu 50 passagens com as sobras da cota da Câmara, e disse que não conhece nenhum parlamentar que devolva o crédito não utilizado.

Além da vantagem de acumular milhagem ¿ que dá direito a outros bilhetes ¿ os parlamentares compram as passagens com antecedência, o que também garante descontos de até 50%. As companhias remetem a carta de crédito às vezes com a cota do semestre todo e a Câmara efetua o pagamento, independentemente do número de bilhetes utilizados.

Uso das cotas não é fiscalizado

Em outro trecho da gravação, que investiga Bauer por peculato, ele explica o que é a praxe da maioria os parlamentares:

¿ Eu tenho uma cota de passagens e não as utilizo integralmente porque compro minhas passagens aéreas com antecedência... Eu teria duas alternativas: devolver o valor que economizo ou permitir que jornalistas, formadores de opinião pública, vereadores, dirigentes de entidade de classe possam ir a Brasília. Prefiro a segunda opção. Devolver para o governo significaria devolver o crédito para o governo e permitir que o Lula pague mais uma prestação do avião que ele comprou para viajar pelo Brasil.

Bauer, de Santa Catarina, tem cota mensal de R$11.729,22. Mas pelos preços médios oferecidos pelas empresas que operam na Câmara ele teria uma sobra mensal de R$7.069,60.

O deputado Cabo Júlio (PMDB- MG) diz que o problema está no sistema da Câmara. Ele admite que a maior parte da cota sobra, mas justifica que o valor foi calculado para cima pela eventualidade de o deputado ter que embarcar em cima da hora e pagar a passagem mais cara, ou se tiver de remarcar e pagar taxas. No seu caso, diz, as sobras são utilizadas para dar passagens para líderes de Minas:

¿ Tinha que acabar com isso tudo, pagar um salário de R$40 mil e o deputado que dê seus pulos para se virar. Não tem salário decente e ficam inventando esses penduricalhos.

Pelo ato que regula as cotas, o deputado só perde o direito em caso de afastamento para tratar de interesse particular, sem remuneração, ou se o suplente tiver no exercício do mandato. A direção da Câmara explica que a cota é do parlamentar e que é responsabilidade exclusiva dele o seu uso. E admite que o ato, de fato, não prevê fiscalização.