Título: Discurso populista de Morales divide bolivianos
Autor: Eliane Oliveira
Fonte: O Globo, 14/05/2006, Economia, p. 37

Se vencer as eleições legislativas de julho, presidente pode adotar medidas ainda mais fortes, dizem especialistas

LA PAZ. Nunca a Bolívia apareceu tanto no noticiário internacional. E, pela primeira vez na história do país, as informações não são relacionadas a golpes de Estado ou às ações do narcotráfico, e sim às propostas nacionalistas do presidente Evo Morales que, independentemente de sua posição ideológica, já chama a atenção por causa de sua origem indígena. Esse cenário divide o país entre aqueles que consideram Morales a única pessoa capaz de adotar medidas concretas de inclusão social e crescimento econômico sustentado ¿ das classes mais pobres ¿ e os que criticam o presidente, devido a seu forte discurso e sua clara parceria com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Entre os mais céticos estão representantes das classes média e alta.

Morales leva vantagem nessa divisão. Na Bolívia, 60% dos cerca de 9 milhões de habitantes estão abaixo da linha de pobreza. São eleitores que se sentem excluídos e se encantam com o termo ¿nacionalização das riquezas naturais¿. E é para essa massa que Morales discursa e ataca o imperialismo não só americano, mas do Brasil, em razão da dependência que o país tem da Petrobras.

¿ Gosto do Evo. Ele está nacionalizando todas as riquezas da Bolívia e isso jamais foi feito antes. E promete distribuir terras em uma reforma agrária. Estamos cansados de sermos explorados ¿ diz o militar aposentado Alejandro Torres, de 90 anos.

Aproximação com Chávez é vista com restrições

Deficiente visual, Armina Garcia tem 29 anos e uma filha de 9. Seu marido não suportou a realidade de dividir um cortiço sem luz e com pouca água com outras 30 famílias e a abandonou. Ela vive de caridade, às vezes não tem o que comer, mas não perde a esperança.

¿ Nossa vida vai melhorar. Temos um presidente que olha por nós ¿ diz ela.

Leocaro Galindo, 65 anos, sobrevive tocando violão nas ruas de La Paz:

¿ Estou ficando velho e, finalmente, posso ter esperanças.

Todo esse apoio fortalece Morales, especialmente junto ao Congresso boliviano. Mas se o presidente conseguir o que às vezes parece impossível ¿ que é obter dois terços dos votos dos parlamentares para a eleição da Assembléia Constituinte, marcada para 2 de julho ¿ seu lado populista vai se sobressair como nunca, alertam especialistas. Com menos votos, Morales será obrigado a adotar uma posição menos arrogante internamente e frente a seus parceiros internacionais.

Uma graduada fonte do governo brasileiro dá seu diagnóstico: uma vitória arrebatadora de Morales na eleição consolidará um lado ¿chavista¿, marcado por populismo e medidas unilaterais.

¿ Não gosto de Morales, suas ações são equivocadas. É um homem sem experiência, não viajou e vem comprando briga com países importantes, como o Brasil ¿ diz Erica Portuce, 24 anos, desenhista.

Walter Solia, consultor na área de comunicações, completa:

¿ Acho que tudo não passa de demagogia. Essa euforia tende a acabar.

A advogada Claudia Córdoba, 25 anos, acredita que ainda é cedo para julgar a administração Morales ¿ que, para muitos na elite boliviana, não tomou ainda medidas que gerem resultados. Mas confessa ser cética:

¿ Espero que ele possa melhorar a vida do povo.

No Congresso boliviano, o ¿evismo¿ também provoca defesas e críticas apaixonadas. O deputado Fernando Messmer, líder do principal partido de oposição no Legislativo, o Podemos, diz que Morales adotou uma linha perigosa, que atrapalha a imagem da Bolívia no exterior. E, internamente, divide o país. Ao decretar a retomada das riquezas naturais pelo Estado, afirma, Morales não levou em conta que poderia causar perplexidade na comunidade internacional, possivelmente afetando investimentos. Assim como outros oposicionistas, ele se diz inconformado com a aliança de Morales com os presidentes Hugo Chávez e Fidel Castro, de Cuba:

¿ Lamentavelmente, ele elegeu como sócios os dois governos menos democratas da América Latina, deixando de lado um parceiro importante como o Brasil.

O deputado Gustavo Torrico, do governista Movimento ao Socialismo (MAS), rebate Messmer. A seu ver, Morales deve se voltar para governantes que lhe estendem a mão, o que não seria o caso do Brasil:

¿ Chávez apresenta iniciativas conjuntas de cooperação nas áreas de energia, saúde, educação e comercial. O Brasil nunca nos ofereceu nada. Sua política se pauta pelos negócios, pela fria face empresarial.

Ele afirma que o presidente chegou para mudar o país:

¿ A maioria da população aprova o governo.

Morales sabe que a parceria com Chávez tende a ganhar cada vez mais críticos em seu país. Por isso, resolveu mostrar um discurso diferente do presidente venezuelano quando o assunto são os Estados Unidos. Enquanto Chávez rechaça a Colômbia e o Peru e abandona a Comunidade Andina de Nações (CAN) ¿ Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela e Peru ¿ por causa dos acordos de livre comércio com os americanos, Morales passou a defender junto a seus colegas colombiano, Álvaro Uribe, e peruano, Alejandro Toledo, que, apesar de acordos com os EUA, a CAN precisa estar unida.

¿ Há uma crise na CAN que precisamos ajudar a debelar ¿ defende o ministro de Terras, Carlos Villegas.

Assim como Chávez e o presidente Lula, Morales quer um papel de liderança na América Latina. Por isso, alerta Gonçalo Chávez, cientista político e diretor do Departamento de Economia da Universidade Católica Boliviana, não pode bater de frente com líderes como Lula.

¿ Morales tem boa projeção entre os países europeus devido, principalmente, à sua origem indígena. Tem de administrar bem sua relação com Chávez e Fidel nessa corrente contra os EUA ¿ diz Gonçalo Chávez.

Para ele, a Bolívia está mostrando ao mundo que é possível fazer uma transição ética e política com democracia:

¿ Morales está conquistando um espaço político que não pode ser desperdiçado.