Título: MINHA PROFESSORA PARECIA QUE IA TER UM ENFARTE¿
Autor: Tatiana Farah
Fonte: O Globo, 16/05/2006, O País, p. 9

Tráfico continua em bairros atingidos por atentados. `Meu tio é da facção, mata polícia¿, diz um menino

SÃO PAULO. Abandono. Esta era, ontem, a sensação dos moradores do Grajaú, no extremo da Zona Sul, um dos bairros mais atingidos pelos atentados da facção criminosa. Nas escolas, as crianças foram dispensadas porque os funcionários temiam bombas e incêndios.

¿ Minha professora parecia que ia ter um enfarte. Eu fui (à escola), mas mandaram voltar¿ disse uma menina de seis anos que brincava em frente a um ônibus destruído na Avenida Carlos Lacerda, uma das maiores do bairro.

O silêncio é regra na região. Ninguém diz o nome nem mostra onde mora. Uma das bases da quadrilha fica a cem metros da avenida, na favela Inferninho. O GLOBO passou três horas no local e nenhum carro de polícia subiu até o Inferninho.

¿ Os caras estão com metranca (metralhadoras). Quem subir já era ¿ disse um garoto de menos de 15 anos.

Com outros meninos, com idade entre 8 e 17 anos, arrancou fios de cobre do ônibus destruído da viação Campo Belo.

¿ Isso dá dinheiro, é oito reais o quilo.

Ônibus queimado não é resgatado e bloqueia trânsito

Outros moradores confirmaram a presença de traficantes na área. Por volta das três da tarde, um comboio de 14 batedores da PM, de moto, chegou para acompanhar o resgate do ônibus, que não ocorreu. O ônibus ficou atravessado na avenida bloqueando o trânsito. Queimado, deixou uma palha branca e preta no chão, de fibra de vidro, material tóxico. As crianças, mais de 15 meninos de chinelos e bermuda, não se importavam. Aproveitavam o bloqueio e a folga escolar para jogar futebol com uma bola velha e murcha.

Naquela região, meninos usados como aviões do tráfico trabalhavam sem problemas. O GLOBO flagrou adolescentes comprando drogas. Muitos eram olheiros e aviões. Outros brincavam soltando bombinhas de festa junina para ver os moradores saírem apavorados nas janelas.

O incêndio ao ônibus acabou destruindo a fiação de postes da avenida. O comércio foi prejudicado. Os moradores ficaram sem luz e sem telefone. A companhia telefônica só chegou ao local na tarde de ontem. Àquela altura, a luz já tinha voltado.

O ônibus foi queimado às três da tarde de domingo. Até a noite de ontem, não havia sido guinchado. Na região há três garagens de companhias de ônibus e todas estavam fechadas. Na Estrada de Itapecerica, o caixa eletrônico de uma agência do banco Itaú foi destruída. Um cartaz avisava que os clientes deveriam procurar outra agência, porque aquela estava com ¿problemas operacionais¿ ¿ na madrugada de segunda-feira, um grupo jogou gasolina e bombas no caixa eletrônico. Mesmo com medo, os comerciantes abriram as portas ontem. Em frente ao banco, dois ¿olheiros¿, ainda crianças, observavam um carro de funcionários do banco chegar para avaliar o estrago.

¿ Meu tio é da facção criminosa, mata polícia. Eu tô com medo porque eles podem matar a gente ¿ contou um garoto de dez anos, aluno da segunda série do ensino fundamental.

Acompanhado de um amigo, ele disse que todos os bandidos do grupo estavam no Inferninho. Afirmou que o tio não estava foragido e que circulava tranqüilamente.

¿ Os caras estão de Golf preto, rebaixado, e vidro escuro. Eles tacam fogo mesmo¿ disse outro adolescente.

Os moradores falaram em pelo menos dois Golf pretos. O GLOBO viu um dos carros rondando o ônibus queimado.

¿ A gente tem de trabalhar. Nem tenho tanto medo, porque a briga não é com a gente. É com a polícia. Mas a turma fica com medo¿ disse um comerciantes da avenida Carlos Lacerda.

Segundo um dos moradores, o medo é maior porque a quadrilha do Inferninho é ¿pé de pato¿. E traduziu:

¿ É que eles matam à toa, por qualquer coisinha.

Por volta das quatro da tarde, o comércio começou a baixar as portas. Moradores disseram que haveria toque de recolher às oito da noite. Não havia polícia na rua. Só perto dos bairros mais nobres, como na região da avenida Faria Lima, os policiais apareceram, armados e em grupos de dois carros. Aos moradores do Grajaú, restavam o medo e a carcaça do ônibus queimado.