Título: GOVERNO NEGOCIOU COM FACÇÃO CRIMINOSA
Autor: Ricardo Galhardo, Chico de Góes e Gelson Venério
Fonte: O Globo, 17/05/2006, O País, p. 8

Governador e polícia negam acordo mas secretário confirma a entrada de 60 aparelhos de TV nos presídios

SÃO PAULO. O governo de São Paulo nega ter cedido às pressões do crime organizado para pôr fim à onda de violência, mas houve uma negociação. No domingo, o corregedor da Secretaria de Administração Penitenciária, Antonio Ruiz Lopes, o delegado de polícia José Luiz Ramos Cavalcante ¿ representante da Secretaria de Segurança Pública ¿ e o comandante da PM em Presidente Prudente, coronel Ailton Araújo Brandão, reuniram-se por cerca de três horas com oito presos, chefes da principal facção do crime organizado no estado, no Centro de Readaptação Penitenciária (CRP) de Presidente Bernardes. Entre os presos estava Marcos Williams Herbas Camacho, o Marcola, apontado como mandante da onda de ataques que deixou 115 mortos em quatro dias.

Horas depois, as rebeliões cessaram quase simultaneamente nas mais de 40 cadeias que ainda estavam amotinadas no estado anteontem.

Ontem à noite, o secretário de Assuntos Penitenciários, Nagashi Furukawa, confirmou que permitiu a entrada de 60 aparelhos de TV para serem instalados em áreas comuns das penitenciárias do Estado de São Paulo, uma das reivindicações dos presos da facção criminosa. Segundo ele, os próprios presos compraram os aparelhos de TV e pediram para instalar nas penitenciárias para que eles pudessem assistir aos jogos da Copa do Mundo agora em junho.

¿ Não vi nada de mal, desde que não comprometa a segurança ¿ disse Furukawa.

Ele explicou que as TVs seriam instaladas na entrada das galerias dos presídios e a facção criminosa comprou os aparelhos porque os chefes da facção foram transferidos para Presidente Venceslau, onde não havia aparelhos de TV e os presos queriam ver os jogos da Copa. Furukawa disse não saber se os aparelhos eram de plasma ou que tamanho tinham.

O encontro no domingo aconteceu a pedido da advogada Iracema Vasciaveo, que admite já ter trabalhado para criminosos ligados a facções organizadas. Oficialmente, Iracema participou do encontro na condição de diretora do Departamento Jurídico da Nova Ordem, entidade até então desconhecida que reúne 15 mil parentes de presos.

Embora já tenha trabalhado para integrantes de facções, Iracema não representa formalmente os oito presos. Isso significa que a presença dela no presídio contraria a lei que rege o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), ao qual os oito chefes do crime estão submetidos. Segundo a lei, os presos só poderiam receber visitas de advogados seis dias depois.

O encontro foi confirmado por Iracema, pelo coronel Brandão e pelo secretário Nagashi Furukawa. Além de permitir a entrada irregular da advogada no CRP, o governo cedeu um avião da PM para levar Iracema, Ruiz e o delegado Cavalcante a Presidente Bernardes.

¿ Minha única incumbência era ir até o local onde os presos estavam ¿ afirmou a advogada, que chegou a São Paulo por volta 0h30 de segunda-feira. ¿ Nem consegui dormir direito porque meu celular tocou a madrugada inteira.

Depois que Iracema saiu e repassou informações que recebeu no presídio aos parentes dos presos, a onda de atentados arrefeceu e as rebeliões acabaram quase simultaneamente. De acordo com a versão oficial, Iracema foi levada a Presidente Bernardes por ter sido incumbida pelas famílias dos presos de checar suas condições.

¿ Certamente houve o fato de a advogada dizer que o Marcola estava bem para que os de fora se acalmassem. Ela tinha condição de transmitir para as pessoas a condição física do Marcola. Isso não é negociação. É um caso excepcional¿ disse Furukawa.

Segundo Iracema, a Nova Ordem foi procurada por parentes dos presos devido a boatos de que tinham sido espancados.

¿ Elas achavam que seus maridos estavam desfigurados mas todos disseram que haviam sido bem tratados ¿ disse Iracema.

Segundo ela, as autoridades admitiram receber uma pauta de reivindicações.

¿ Eles disseram que se houvesse mais alguma reivindicação que fosse feita por escrito ¿ revelou.

A advogada negou trabalhar para alguma facção criminosa, mas admitiu que defendeu integrantes de quadrilhas. Nas próximas semanas, Iracema, que também é relações públicas da Associação de Advogados Criminalistas de São Paulo, receberá do Tribunal de Justiça credencial que permitirá acesso irrestrito às penitenciárias.

Ontem à tarde, Furukawa negou ter havido acordo:

¿ O que eles disseram ter pedido? Banho de sol? Não foi dado. Fim do regime de observação? Também não foi concedido. Que acordo é esse em que nada foi atendido?

Ele justificou o fim das rebeliões da seguinte forma:

¿ Rebeliões duram em média três dias porque corta-se água, luz e alimentação.

Comandante da Polícia Militar na região de Presidente Prudente, o coronel Brandão negou enfaticamente ter havido acordo com os criminosos, mas admitiu que houve negociação. Segundo ele, foi pedido a Marcola que acabasse a onda de terror.

¿ Deixei bem claro que tinha de haver rendição incondicional. Se não, a PM e a Polícia Civil iam fechar cada vez mais o cerco em cima dos bandidos ¿ afirmou o coronel.

O comandante da PM, Elizeu Eclair Teixeira Borges, negou acordo com a facção criminosa. Segundo ele, a polícia teve procedimentos-padrão.

¿ Nossa experiência de rebeliões faz com que adotemos procedimentos padrões. Primeiro, negociação à exaustão, principalmente quando há reféns. Não fazemos acordo com bandidos, isso não existe ¿ disse ele.

(*) Especial para O GLOBO

COLABOROU Flávio Freire