Título: Curto das vistas
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 17/05/2006, Economia, p. 28

Na agenda de conversas do mercado financeiro, agora é tempo de pensar a médio prazo e estabelecer os passos que faltam para que o país alcance o nível de investment grade. Se essa agenda já parecia alienada, nos últimos dias caiu no ridículo. Na segunda-feira, um economista falava dessas etapas para chegar lá no desejado nível baixo de risco, numa cidade onde cinco milhões de pessoas ficaram sem transporte por decisão dos criminosos. Shoppings, escolas e até alguns bancos fecharam as portas e o número de mortes se aproximou de cem.

O risco-Brasil subiu na segunda-feira e abriu em alta ontem. É por que finalmente os analistas do mercado perceberam o risco que o país está realmente correndo? Não, foi porque se teme pressão inflacionária nos Estados Unidos e a elevação dos juros por mais dois ou três meses lá. Para qualquer pessoa isso parece insano. E é.

Na lógica do mercado faz sentido esse olhar superespecializado para índices descarnados: tendência da relação dívida/PIB, indicadores de liquidez, sinais de aperto ou relaxamento da política monetária americana. Encerram aí a fronteira do seu mundo e não olham os sinais exteriores de uma onda mais forte e contaminadora ameaçando todos os parâmetros nos quais baseiam suas análises.

Para eles, tudo o que está fora do espectro exclusivamente financeiro é desimportante. Pode vir a se tornar importante quando houver menos dinheiro circulando entre as economias globalizadas. Aí passarão a superdimensionar pequenos fatos para justificar o que eles chamam de aumento da aversão ao risco.

Agora há uma pequena mudança de sinal na circulação de dinheiro porque o comunicado do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) na semana passada frustrou uma maioria que achava que seria dado um sinal claro de pausa na elevação dos juros. O comunicado do Fed foi mais confuso, e decifrar esses hieróglifos é o que captura as mentes dos economistas do mercado financeiro paulista. Eles se dedicam a esse momentoso debate sobre o que o Fed quis dizer, numa cidade sitiada onde os ônibus não podem circular porque os bandidos não deixam.

Pode-se dizer que há várias medidas de risco e eles estão olhando os riscos financeiros de um país com alta proporção da dívida/PIB. Enquanto eles focam em números vão errando na avaliação de risco, qualquer que seja o conceito. A Bolívia, por exemplo, durante muito tempo compartilhou com o Brasil o mesmo degrau de risco de investimento, segundo as agências classificadoras. Depois o Brasil subiu um degrau, mas continuou vizinho da Bolívia e bem longe do Chile e do México, que já têm o desejado investment grade. Uma das funções das avaliadoras de risco é proteger o investidor com os sinais avançados sobre os perigos que ameaçam seu investimento. Quem acreditou que a Bolívia era tão ou quase do mesmo nível de risco-país que Brasil está agora chorando sobre os contratos derramados. A Bolívia continua dedicada ao trabalho de rasgar todos os contratos. Agora as classificadoras vão rebaixar a Bolívia. Depois do sinistro.

Por que o mercado quer o investment grade? Nesse nível de risco, as taxas de juros cobradas do Brasil e das empresas brasileiras ou que operam aqui são mais baixas. Nesse nível, vários fundos que, por razões regulatórias, estão impedidos de investir em país de alto risco poderão comprar ativos no mercado brasileiro. Haverá, portanto, mais oferta de recursos e juros mais baixos. É um objetivo importante para o país como um todo, porque pode significar mais investimento produtivo, menor custo de capital, mais crescimento.

Mas esse olhar especializado nos indicadores financeiros peca por não ver em volta e não ter mecanismos de avaliação de risco mais abrangentes. O que está acontecendo no Brasil é gravíssimo. A cada novo ataque do crime organizado ele mostra mais força, mais preparo, mais sofisticação. A cada nova onda, o Estado brasileiro parece mais frágil, mais incapaz de encontrar o caminho da normalização. Portanto, o risco relevante não é um ponto a mais na dívida/PIB, ou um fato externo que reduza o fluxo de liquidez, mas que condições têm as instituições brasileiras de manter o princípio da autoridade do Estado.

Para chegar ao investment grade é preciso cumprir determinadas etapas de institucionalização. Por exemplo: independência do Banco Central, proteção ao cumprimento dos contratos, uma regulação não hostil ao investimento privado. De fato, são etapas importantes para o funcionamento previsível da economia. Mas o erro desse raciocínio é não conseguir fazer a transposição para a sociedade como um todo: precisa-se no Brasil do cumprimento de várias etapas de institucionalização. Precisamos avançar e estamos em pleno regresso. Quando os bandidos invadem São Paulo e aterrorizam a população estão rompendo o contrato social. Se a autoridade constituída não se impõe numa questão-limite, como conseguirá se impor nas questões específicas financeiras? Para usar uma expressão do Brasil rural, apropriada pelo mestre Rosa, o mercado está ¿curto das vistas¿.