Título: DE OUVIDOS LIGADOS NA CÂMARA
Autor: Alan Gripp
Fonte: O Globo, 18/05/2006, O País, p. 3

Pagando propina, advogados de facção criminosa souberam da transferência de bandidos dois dias antes

Dois dias antes de ordenar a série de atentados em São Paulo, o chefe da principal facção criminosa do estado, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, foi informado dos planos da polícia paulista para os principais chefes do grupo criminoso que comanda, inclusive sobre a decisão de transferir oito deles para um presídio de segurança máxima. Dois advogados dos bandidos são acusados de comprar na quarta-feira da semana passada, dentro da Câmara dos Deputados, em Brasília, cópias do depoimento de dois delegados do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), da polícia paulista, em sessão secreta da CPI do Tráfico de Armas. Para ter a gravação, os advogados dos criminosos pagaram suborno de R$200 a um funcionário terceirizado da Câmara.

No depoimento a portas fechadas, os delegados Rui Ferraz e Godofredo Bittencourt fizeram revelações que, por causa do suborno do funcionário da Câmara, foram imediatamente repassadas ao criminoso. Os delegados contaram, por exemplo, que a polícia estudava a possível transferência de chefes da facção para o presídio de Presidente Bernardes, onde seriam submetidos ao chamado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), eficiente sistema de isolamento de criminosos.

A gravação foi obtida por dois advogados de Marcola, Sérgio Wesley da Cunha e Maria Cristina de Souza Rachado. Eles subornaram o técnico de som Arthur Vinícius Silva, que gravava a sessão e aceitou dar-lhes cópias dos depoimentos em troca da propina. No dia seguinte, quinta-feira, a gravação foi transmitida em audioconferência para 44 presídios controlados pela facção em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Paraná.

CPI pede prisão dos advogados da facção

A CPI aprovou ontem mesmo pedido de prisão dos dois advogados. O pedido será encaminhado hoje para a Justiça de São Paulo.

Ontem, em depoimento à CPI, Arthur Vinícius confessou ter vendido as gravações. Aparentando tranqüilidade, ele revelou a operação com riqueza de detalhes. Contou que foi abordado pelos emissários de Marcola antes de a sessão começar e que, ao fim do depoimento, três horas depois, todos se encontraram num restaurante no prédio anexo de número 3 da Câmara. De lá, foram juntos de táxi para um shopping, onde ele transmitiu o conteúdo de um cartão de memória para dois CDs numa loja de fotografia e entregou a encomenda.

¿ Dentro da loja, depois que eu entreguei os CDs, ela (Maria Cristina) botou o dinheiro no meu bolso e foi embora ¿ contou Arthur, que negou fazer parte de um esquema de vazamento de informções. ¿ Eu não tinha conhecimento do que se tratava na sessão. Ofereceram a grana e a idéia do dinheiro me tentou. Infelizmente, não ganho bem. Fui corrompido ¿ disse Arthur.

Arthur contou que a proposta foi feita por Sérgio da Cunha, antes de começar o depoimento:

¿ Sérgio me procurou e disse: ¿Passa (a gravação) para mim que eu te dou uma grana.

Na quarta-feira da semana passada, os delegados compareceram à CPI para dar detalhes das investigações da Polícia Civil sobre a facção criminosa. Pouco minutos antes de começar a sessão, eles reconheceram os advogados da quadrilha entre as pessoas prontas para assistir ao depoimento e alertaram os deputados. A CPI, então, decidiu fechar a sessão.

No dia seguinte, o Deic notou um comportamento atípico nos presídios e passou a desconfiar do vazamento do depoimento. Os delegados ligaram para a CPI, que acionou a Polícia Legislativa, responsável pela segurança do Congresso. Naquele dia, para a surpresa de seus colegas, Arthur pedira demissão sem maiores explicações e não foi encontrado.

Sexta-feira, a polícia paulista já não tinha mais dúvidas do vazamento. O deputado Arnaldo Faria de Sá (PDT-SP) contou que, naquele dia, o delegado Rui Ferraz lhe telefonou contando que Marcola sabia dos mínimos detalhes do depoimento, como os adjetivos usados sobre o criminoso.

¿ O Rui disse: ¿Arnaldo, o Marcola tá me gozando!¿. O Marcola sabia que tinha sido chamado, por exemplo, de bandidão e de comandante do crime organizado ¿ disse o deputado.

Ainda na sexta, o técnico de som foi identificado pela Polícia Legislativa e detido. Ele já foi ouvido pela Polícia Federal, que abriu inquérito. Ontem, durante a sessão, sua prisão chegou a ser defendida por alguns deputados. Eles, no entanto, voltaram atrás por considerar que o técnico de som está colaborando com as investigações e pode ser útil. No fim da tarde, solicitaram à Polícia Federal que dê proteção a ele.

Funcionário da empresa Adservice, Arthur contou que presta serviço na Câmara há três anos. Para gravar sessões de CPIs e comissões permanentes, ele ganhava, líquidos, R$1.300 por mês. Ontem, disse não ter se dado conta do que provocara quando aceitou o suborno. E disse estar arrependido e sem dormir desde sábado:

¿ Cresci o olho. A causa do que eu fiz foi gigantesca.

Ao ser perguntado por que se corrompeu por tão pouco, respondeu:

¿ Duzentos reais é pouco para muita gente, como para a deputada Laura Carneiro (PFL-RJ, que presidia a sessão), mas para mim não.

A CPI decidiu também investigar se o técnico de som foi corrompido isoladamente ou se já estava cooptado pelos criminosos. Para isso, aprovou ontem a quebra de sigilo telefônico dele e dos advogados.

Os deputados da CPI amenizaram os efeitos do vazamento de informações nos ataques orquestrados pela facção criminosa.

¿ Acredito que as ações já iriam acontecer, e que isso foi mais um fato que contribuiu ¿ disse o presidente da CPI, Moroni Torgan (PFL-CE).