Título: Ajuda do governo não chega a quem passa fome
Autor: Carter Anderson, Heliana Frazao e Raimundo Garrone
Fonte: O Globo, 18/05/2006, O País, p. 17

Pesquisa mostra que 60% das famílias que não têm o que comer ficaram sem receber recursos de programas sociais

RIO, SALVADOR e SÃO LUÍS. A maioria dos domicílios em que moradores passaram fome, em 2004, não recebeu recursos dos programas sociais do governo. Segundo os dados da pesquisa inédita divulgada ontem pelo Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 1,2 milhão dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave obteve algum tipo de ajuda oficial. Já em cerca de 2,1 milhões de domicílios (60%), os moradores precisaram procurar outra saída para sobreviver.

O secretário de Avaliação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Rômulo Paes, admitiu a falha ontem, durante a divulgação da pesquisa, mas frisou que desde então a situação melhorou. No entanto, ainda não há pesquisas recentes que possam ser usadas como comparação:

¿ Realmente, em 2004 uma parcela da população que deveria estar atendida não estava. Mas em 2005 aceleramos enormemente e fizemos a revisão de todos os cadastros. A situação hoje seguramente é mais favorável ¿ afirmou.

Família baiana que passa fome não tem ajuda oficial

Paes disse que até o fim do ano os cinco benefícios destinados aos mais carentes (Auxílio-Gás, Cartão Alimentação, Bolsa Alimentação, Bolsa Escola e Bolsa Família) estarão unificados. Nos próximos sete meses, disse, o Bolsa Família, cujo orçamento para 2006 é de R$7 bilhões, terá chegado a 11,1 milhões de famílias, incluindo todas em situação de insegurança alimentar grave, afirmou o secretário.

Enquanto o governo não cumpre a promessa e a ajuda não chega, Jaíde Santos da Costa, de 32 anos, que mora na periferia de Salvador, apela para a ajuda da mãe, que recebe um salário-mínimo de aposentadoria. Só assim consegue alimentar os dois filhos, além de seu enteado, Lázaro, de 8 anos. Os problemas provocados pela desnutrição já levaram Lázaro ao hospital inúmeras vezes e comprometeram seu rendimento escolar. Há dois anos, desde que foi matriculado, não consegue sair do pré-escolar. Preocupada com a situação do menino, a doméstica Jane Santos, amiga de Jaíde, procurou ajuda.

¿ Ano passado eu o levei ao médico para saber por que ele não crescia como as crianças normais. A doutora disse que Tico (apelido de Lázaro), tem falta de tudo: cálcio, ferro, vitaminas e tudo o mais. Também, na situação em que eles vivem, não podia ser diferente. Quando dá, ajudo, porque tenho pena dessa criança ¿ diz Jaíde.

Semi-analfabeta e desempregada, Jaíde tenta há anos receber ajuda do governo, já que seu marido, Lázaro, é biscateiro e vive desempregado.

¿ Já fiz de tudo para ver se recebo alguma ajuda. Sou cadastrada no Bolsa Escola, no Auxílio-Gás e todos esses programas que aparecem. Eu corro atrás, mas nunca chegou nada para mim. O que me deixa mais indignada é saber que muita gente que não precisa recebe a tal ajuda do governo. Se não fosse minha mãe, não sei o que seria da gente ¿ desabafa Jaíde.

No Nordeste, 809 mil crianças até 4 anos em risco

A pesquisa do IBGE mostra que as crianças são a parcela da população mais exposta à fome, sobretudo no Nordeste. Lá, 809 mil crianças de 0 a 4 anos (17% do total na região) vivem em domicílios em insegurança alimentar grave, ou seja, pelo menos um de seus moradores havia passado fome nos três meses anteriores à pesquisa.

Os dados do IBGE confirmam a grande disparidade regional no país: o índice de 17% de crianças em domicílios onde há fome, nas regiões Norte e Nordeste, é três vezes maior do que os registrados nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, que oscilam de 5,3% a 5,9%. Na faixa de 5 a 17 anos, a desigualdade permanece: o índice, que chega a 18% no Nordeste, cai para 4,7% na Região Sul e é de 5,6% no Sudeste.

Assim como Jaíde, em Salvador, Eliziete Seguins de Almeida, de 21 anos, que mora numa palafita na periferia de São Luís, dá cara às estatísticas da fome no Nordeste e espera pelo dia em que receberá a ajuda do governo. Só assim acredita que conseguirá alimentar com regularidade os três filhos . Abandonada pelo marido, ela anteontem estava há três dias sem comer e dividia a papa da filha de 8 meses com os dois irmãos. Eliziete diz que só come quando a irmã mais velha lhe manda um pouco de ajuda. Desesperada, diz que aceita até se prostituir para evitar que seus filhos voltem para o interior onde, diz ela, a situação é ainda pior. Sem documentos, não está inscrita em qualquer programa do governo.

¿ Eu choro todo o dia e peço comida a Deus ¿ diz Eliziete.

(*) Especial para O GLOBO