Título: SÃO TANTOS OS CORPOS QUE TEM HAVIDO ENTERRO ATÉ DURANTE A NOITE
Autor: Flávio Freire
Fonte: O Globo, 20/05/2006, O País, p. 4

Em Perus, 23 indigentes foram enterrados desde o início dos conflitos

SÃO PAULO. O elevado número de vítimas do confronto entre supostos criminosos e a polícia alterou a rotina no cemitério de Perus, em São Paulo, que ficou conhecido internacionalmente por abrigar em uma vala clandestina militantes de esquerda mortos na ditadura militar (1964-85). A superlotação no Instituto Médico-Legal (IML), que teve sua carga de trabalho aumentada por causa das 107 mortes de suspeitos, provocou uma cena inusitada ontem: enterro à noite.

O cemitério de Perus é o local para onde são enviados, em sua maioria, corpos de indigentes da capital. De acordo com o Serviço Funerário Municipal, responsável pela administração dos cemitérios públicos de São Paulo, a média de enterros de indigentes é de seis por semana.

Desde que o confronto entre a polícia e os criminosos começou, na sexta-feira da semana passada, 23 indigentes foram enterrados no cemitério. Cinco deles ontem à noite.

Geralmente, os enterros de indigentes se dão de terça a sexta-feira, na parte da manhã. Mas o IML solicitou ao Serviço Funerário que acelerasse o sepultamento dos corpos não-identificados para que sobrasse espaço para o de outras vítimas. O prazo para que um morto sem identificação possa ser caracterizado como indigente é de 72 horas. A maioria, no entanto, permanece no IML por um prazo maior, na tentativa de que alguém reclame o corpo.

Anteontem, 12 pessoas que não foram reconhecidas por familiares foram enterradas. Ontem, foram mais 11. Apenas uma delas foi morta a tiros no dia 12, quando os ataques começaram. Outra vítima do dia 12 morreu por pneumonia.

Os mortos sem identidade não têm direito a cerimônia religiosa. Não há flores, faixas de homenagem nem plaqueta com as datas de nascimento e falecimento. Sobre os corpos, só um amontoado de terra. O único registro de que estão ali são as anotações nos livros do cemitério, que descrevem a data do óbito, a idade aproximada, o sexo, a causa da morte. No local do nome, a palavra ¿indigente¿ ou ¿desconhecido¿.

Os corpos de ontem foram sepultados na quadra nove, gleba três. Para adiantar o serviço, os coveiros já deixaram prontas 36 covas, uma ao lado da outra.

* Especial para O GLOBO