Título: MARCOLA, ECCE HOMO
Autor: REINALDO AZEVEDO
Fonte: O Globo, 20/05/2006, Opinião, p. 7

Não tinha certeza de que pudesse assinar este texto, mas cá estou. Os tumores foram tirados da minha cabeça e, para a tristeza de uns tantos, eram benignos. Fui contemplado com a hipótese mais remota e ganhei um segundo mandato, numa reeleição decidida por um único voto. Diogo Mainardi ficou surpreso que, da minha cachola, também saíam coisas benignas ¿ porém incompatíveis, alerto, com o conjunto da obra, daí que doutor Marcos Stavale tenha sido obrigado a retaliar o meu crânio para extirpá-las. Ah, ¿louvado seja Deus que não sou bom¿.

Andava meio aborrecido. Não com os tumores, já que os ignorava. Você sabe, leitor: a vida acadêmica no país é um porre seco. Vivemos bêbados de mesmice e falta de imaginação. Eis que, de repente, nesta produtivista São Paulo, surge um líder schumpeteriano ¿ e não foi na Fiesp ¿ dotado daquela selvagem destruição criadora que faz a fortuna das nações: Marcola. Ecce homo. Finalmente, há um intelectual no Bananão que, consta, já leu Dante ao menos. E Lenin. Este último, nem a esquerda o fez. Sempre tento debater a obra da Múmia Homicida, mas os ¿progressistas¿ mudam de assunto. O máximo de leninismo que conhecem vem de Marco Aurélio Garcia, Frei Betto ou Emir Sader. Credo!

Marcola sabe ¿o que fazer¿. O PT já quis parar São Paulo. A CUT já quis parar São Paulo. O MST já quis parar São Paulo. Em vão. O PCC parou. A esquina da Ipiranga com a São João não pertence mais ¿à deselegância discreta de suas meninas¿. Foi tomada pelo pânico e pela ausência de Estado. Imaginem a inveja que Marilena Chauí deve sentir do cara. Ela está há três décadas tentando descobrir se suas idéias têm as nervuras do real. Sua obra máxima é o PT, que abriga os ¿quadrilheiros¿ indicados pelo procurador-geral da República. Marcola precisou só de um celular para pôr o capitalismo de joelhos.

Depois de anos à espera do Messias, na vigência do mandarinato do Impostor, chega-nos o redentor. Encarna uma das mais caras ilusões regressivas de nossa ficção esquerdopático-pequeno-burguesa: o bom bandido, o Robin Wood não dos morros (que isso é coisa do Rio), mas da periferia, porosa a modelos alternativos de democracia. Nas franjas da cidade, PT e PCC dividem o poder. Em São Paulo, o crime não tem vista para o mar. E pode ainda se espalhar por canaviais e laranjais do rico interior, à esteira da plantação de presídios. Marcola não tem suingue nem manemolência e não gera uma subcultura alternativa, o que decepciona a antropologia chinfrim. O crime, por aqui, vem a palo seco.

E como reage a intelligentsia paulistana? Ora, batendo no peito suas culpas, suas máximas culpas. Até cineastas apareceram para opinar sobre as origens sociais da violência. Vá lá: a maioria deles consegue ser menos dolosa quando fala do que quando filma. Pense assim: se não trabalham, não desperdiçam dinheiro da Petrobras. Sempre que um desses cineastas estiver filmando a metade estará rendendo o dobro. Se não fizer um único filme, alcançará o limite da produtividade.

Segundo entendi, Marcola é resultado da pobreza e da iniqüidade das elites. Como boa parte dos marginais tem uma origem humilde, a circunstância vira causa. A relação entre miséria e banditismo corresponde à existente entre a mucosa da boca e a do intestino: são parecidas, e a matéria que os dois órgãos processam, na origem, é a mesma. Mas não se pode, sem grandes constrangimentos físicos ou morais, tomar um pelo outro. A comparação original é de Musil, que lembra que os lábios, não obstante aquele parentesco, têm mais intimidade com o espírito. Musil pra quê? Temos Gilberto Gil.

A história ensina o óbvio: a escalada do crime é sempre compatível com o grau de impunidade. Tiranias, mesmo quando querem ser virtuosas (reclamem com Platão se lhes parece um paradoxo), resultam na delinqüência que protege os tiranos e sequazes. O mal que ameaça as democracias é a tolerância com aqueles que pretendem solapar as bases que a sustentam. Não é coincidência que o Brasil que agüenta o PT vá aprendendo a conviver com o PCC. Olhe aí, Diogo: continuo maligno.

REINALDO AZEVEDO é jornalista. E-mail: mahfud@uol.com.br.