Título: Mortos sem nome
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 21/05/2006, Economia, p. 34

Essa terrível semana de maio terminou com um saldo assustador de falhas das instituições, respostas erradas das autoridades e uma lista de 107 mortos sem nome. O poder no Brasil está atarantado e mostrou seus defeitos e todo despreparo para lidar com situação limite. Uma pergunta inquieta: os mortos estão sem nome porque a polícia ainda nem sabe quem foi que ela matou?

O governador Cláudio Lembo disse que os nomes estão em sigilo porque tem que ser respeitada a ¿estrutura burocrática legal¿. Explicou que só depois de estarem abertos todos os inquéritos policiais que investigarão a participação deles nos atentados é que seus nomes poderão ser divulgados. O Brasil então terá esses mortos inominados, por muito tempo, assombrando as instituições e alimentando a pergunta: terão sido mortes aleatórias?

Começaram a ser enterrados ontem em massa sem que um olhar independente pudesse dizer como foi que eles morreram. Serão mesmo bandidos? Policiais foram cruelmente assassinados, mas não é tolerável que eles comandem uma vingança sangrenta.

O presidente da República acha que tudo é culpa de não ter havido investimento em educação antes dele. Fala isso para, de novo, jogar para a herança maldita a culpa por qualquer mal feito, como é de seu feitio. Ele mesmo errou muito na educação. Mas não é a falta de educação que explica uma explosão descontrolada de violência como a que se viu em São Paulo. Os diplomas do Marcola atestam que a explicação é outra.

O governador de São Paulo culpou a elite branca. O Brasil tem de fato um problema não resolvido, não discutido, escamoteado de divisão na sociedade. A elite brasileira é espantosamente branca e ascender a ela é mais difícil para um negro. Apesar de medido e estudado, o fenômeno continua sendo negado. Mas não estamos diante de um conflito racial. Felizmente. Cláudio Lembo fará a sua parte se orientar a sua polícia a evitar o erro de sempre, quando a polícia mata o cidadão por ter a cor e a idade do suspeito usual: o jovem negro.

A grande explicação não está nos velhos defeitos do Brasil, não está na desigualdade social ou racial, nem nos atrasos educacionais. Tudo isso é importante e deve ser enfrentado por todas as razões que apequenam o nosso desenvolvimento, mas o que está em jogo é a segurança pública. Falta uma política de segurança pública com todos aqueles ingredientes que os especialistas têm apontado em consenso: união das polícias, atuação conjunta das autoridades de várias instâncias administrativas, combate à corrupção policial, prisão seletiva com perigosos separados dos que têm chance de reabilitação, para não fornecer aos chefes do crime e tráfico a mão-de-obra barata e cativa. O cardápio é longo, conhecido.

Nada é simples, é por isso que o trabalho tem de ser constante e não por espasmos quando a explosão acontece. Até os detalhes que parecem fáceis são complicados como o bloqueio dos celulares. Há duas formas de fazer: desligando-se a rádio base como está sendo feito agora, de emergência. Esse sistema prejudica todos os moradores em volta. Ou o sistema que instala o bloqueio no presídio mesmo e tem grande chance de ficar restrito ao local. Basta instalar uma espécie de rádio base ao contrário, me explicou uma das empresas. Mas cada operadora tem uma faixa de onda, portanto o kit completo terá de bloquear todos os sinais. Para interromper um sinal o aparelho deve custar por volta de R$400 mil a R$500 mil. Mas o segundo bloqueio já pode usar parte dessa estrutura, como a antena, e fica mais barato. Tudo junto pode custar R$1 milhão. Calcule o custo para todos os presídios do país, mais de mil. Vai a bilhão. As empresas não vão pagar por isso. Vão despejar o custo na tarifa. Agora, o mais importante: quem vai cuidar da manutenção? Quem vai manter o bom funcionamento das baterias? Quem vai impedir que o sinal do bloqueador seja desligado? Qualquer dez minutos desligado já faria a festa dos bandidos. Batemos de novo nos nossos outros defeitos. Mas é uma providência importante que já poderia ter sido regulada pela Anatel, discutida com o setor e implementada. Não vai acabar com o crime no Brasil, nem mesmo com a comunicação entre criminosos, mas aumenta o grau de proteção da sociedade.

Há muito mais que os governos podem fazer para elevar essa proteção, mas outras instituições devem participar desse grande mutirão da segurança pública. A OAB por exemplo sai muito mal desse episódio. Perguntada sobre o tema, ela sempre reage de forma corporativista. O advogado não deve ser revistado porque ¿a maioria é honesta¿, argumenta o presidente da Ordem, Roberto Busato. Ora, esse é um estranho argumento para ser usado por um advogado: a idéia de que a maioria absolve a todos, preliminarmente. Nem suspeita pode haver. Não deveria haver polícia no Brasil, porque a maioria dos cidadãos brasileiros é honesta. Não deveria haver detector de metais nos aeroportos, porque a maioria dos passageiros não carrega armas.

A OAB é a auto-regulação da profissão. Ela tem autoridade a exercer no combate aos advogados que usam a cobertura institucional para fins ilícitos. A sociedade espera que a Ordem esteja no comando do combate ao mau exercício da profissão.

Toda a tragédia que se abateu sobre o Brasil deixa uma lição: nós temos vários problemas, mas o que está diante de nós é uma profunda crise de segurança.