Título: A lista de Férrez
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 23/05/2006, O GLOBO, p. 2

Quando se recusa a divulgar a lista dos mortos pela polícia depois dos ataques do crime organizado, o governo de São Paulo reforça as suspeitas de que inocentes foram executados num banho de sangue vingativo. Agora o Ministério Público lhe dá 72 horas para apresentar a lista dos 109 mortos ¿suspeitos¿. A sociedade espera das autoridades o firme combate ao crime, mas não que isso dê pretexto à instalação de estado policial. Há sinais dele na periferia pobre da capital paulista.

O escritor ¿marginal¿ Férrez teve que deixar o estado de São Paulo: desde que usou seu blog, na quinta-feira passada, para denunciar as execuções e conclamar os parentes da vítimas inocentes a denunciar os abusos, ele e sua família passaram a receber ameaças. Ele já tinha uma boa lista de vítimas. A intimidação teve o claro objetivo de evitar sua divulgação.

No encontro que teve ontem com o senador Bornhausen, presidente do PFL, o líder Rodrigo Maia e o prefeito paulistano Gilberto Kassab, o governador Cláudio Lembo voltou a negar os abusos. ¿Eu acho que pode ter havido aqui e ali um eventual inocente morto, mas não houve matança. Isso não houve. Se houve matança em São Paulo, foi de policiais.¿

A facção criminosa matou mesmo 23 policiais militares e sete policiais civis, além de nove agentes carcerários e três guardas civis. No total, 42 agentes da lei. Mas são fortes os indícios colhidos pela imprensa de que entre os ¿suspeitos¿ há inocentes que foram abatidos pelas blitzes policiais nas periferias. E não foi ¿aqui e ali¿, como diz o governador, mas de forma bem mais ampla e em números mais expressivos. Daí a importância da lista cobrada pelo Ministério Público.

Voltemos à história de Férrez e sua lista interrompida. Morador de Capão Redondo, premiado por seus trabalhos de ¿literatura marginal¿ que buscam retratar a vida na periferia, na quinta-feira ele fez um apelo em seu blog para que a população ajudasse a divulgar os nomes das vítimas, afirmando que ¿a polícia está fazendo de nossa periferia um estado para lá de nazista¿. No dia seguinte deu uma entrevista ao site da agência Carta Maior descrevendo com riqueza de detalhes o terror instalado no bairro, explicando sua iniciativa: ¿Então é assim, matou, enterrou e pronto? Espera aí! O cara foi assassinado e isso não vai ser investigado só porque é pobre?¿

Conta o assassinato de dois conhecidos, um vendedor de flores e outro de produtos de limpeza: ¿Todos os dias eu via os meninos lá. Na segunda me falaram que os caras tinham atirado nos meninos no domingo à noite. Eles estavam tomando cerveja numa barraca de lanches. Chegou um carro preto ¿ alguns dizem que viram uma viatura também ¿ desceram cinco homens de touca ninja e atiraram nas pessoas da barraca. Quatro morreram e três estão no hospital ainda. Ninguém tinha antecedentes. Um se chamava Maurício e o outro, Brigadeiro. Mas a polícia não divulgou seus nomes.¿

Em outro trecho: ¿Não foi a população que declarou guerra à Polícia Militar. Foram os bandidos, mas quem está pagando é a população. A polícia recebe coação deles há tempos, mas agora está guerreando com a gente porque o bandido não fica moscando na rua de bobeira.¿

Na linha do governador Lembo, diz que ¿a elite é suicida há tempos. Há o mundo dos que têm milhões e o dos que não têm o que comer no dia. Os dois mundos acabam se encontrando¿. Mas não poupa o governador: ¿Todo cara da elite retrata a elite como se fosse o outro. A elite é sempre quem tem mais. Se tenho pouca terra, pouca Mitsubishi, pouco Chrysler, a elite é o outro, o que tem iate. A elite não se enxerga como elite. Ninguém é culpado.¿