Título: Advogados com o crime
Autor: Evandro Éboli/Alan Gripp
Fonte: O Globo, 24/05/2006, O País, p. 3
Advogados de facção criminosa dão informações desencontradas e deixam deputados furiosos
Um festival de contradições marcou o depoimento à CPI do Tráfico de Armas dos advogados ligados à organização criminosa que comandou os recentes atentados em São Paulo. Maria Cristina de Souza Rachado e Sérgio Wesley da Cunha negaram ter subornado por R$200 um técnico de som da Câmara para obter a gravação de um depoimento secreto na mesma CPI, mas deram informações desencontradas e deixaram furiosos os deputados. À noite, os dois foram submetidos a uma acareação que demonstrou ainda mais as divergências entre as linhas de defesa de ambos. Os parlamentares ficaram convencidos de que os advogados atuam a serviço do crime organizado, e decidiram pressionar pela prisão dos dois.
O depoimento mais contraditório foi o de Maria Cristina, que defende o chefe da facção criminosa, Marcos Camacho, o Marcola. Ela se atrapalhou ao tentar explicar o que fazia na Câmara no dia 10, quando os delegados Ruy Ferraz e Godofredo Bittencourt, da Polícia Civil, prestaram o depoimento secreto. Os policiais revelaram plano para transferir os principais chefes da facção. As gravações podem ter sido o estopim da onda de ataques.
"É cana! É cana!", grita deputado
Sem respostas convincentes e pressionada pelo relator Paulo Pimenta (PT-RS), ela chorou copiosamente. Quando os deputados já discutiam um novo pedido de prisão por falso testemunho - semana passada a CPI já pedirá a prisão dos dois advogados - ela passou mal e seu depoimento teve que ser suspenso.
- É cana! É cana! - chegou a gritar o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) quando a CPI exibiu fotos em que os dois aparecem circulando na Câmara com o técnico de som Arthur Vinícius Pilastre Silva, que confessou ter recebido a propina.
Num primeiro momento, a advogada tentou negar participação na operação de compra das gravações e disse que não ficou com uma cópia do CD. Chegou a atribuir a culpa a Sérgio Wesley. Depois se contradisse, recuou e confessou ter recebido os CDs. Ela não conseguiu explicar, entre outras coisas, por que pagou (por R$18) as duas cópias feitas por Arthur Vinícius numa loja de fotografia de um shopping em Brasília, e o táxi que levou os três da Câmara para lá.
- Não faço parte de nenhuma facção criminosa. Defendo o Marcos Williams (Marcola). Ele nunca me disse que pertence a uma facção. Quem fez dele esse mito foi a mídia. O corpo dele é todo marcado por espancamentos sofridos na prisão.
- A casa caiu! - voltou a provocar Faria de Sá.
Os deputados exibiram imagens do circuito interno de TV da Câmara e também do shopping onde os dois advogados foram receber cópia do CD. O relator da CPI, Paulo Pimenta (PT-RS) destacou que as imagens indicavam que Maria Cristina tinha prestado falso testemunho. As cenas mostram que os três se comportaram como se quisessem evitar serem vistos juntos. Entraram separadamente no restaurante da Câmara e de lá seguiram para o shopping onde a fita com a sessão reservada da CPI foi copiada.
Sérgio Wesley prestou depoimento em seguida e reconheceu que pediu o CD a Arthur Vinícius. Ele diz que sua atitude não foi ilegal e que fez isso porque queria informações sobre as investigações de seu cliente Leandro Lima Carvalho, também acusado de pertencer a facção, que prestou depoimento do mesmo dia.
- Deveria ter pedido oficialmente à comissão, foi um erro.
O advogado disse ter certeza de que o depoimento não foi responsável pelos ataques de São Paulo.
- Queria fazer a ligação do meu cliente com o dela - defendeu-se, referindo à advogada de Marcola. - Por isso, autorizei que ela tivesse acesso ao depoimento do meu cliente.
História mal contada
Um depoimento cheio de contradições
As muitas versões da advogada Maria Cristina:
PRESENÇA INEXPLICADA: Maria Cristina se enrolou ao tentar explicar sua presença em Brasília no dia do depoimento dos delegados paulistas. Primeiro disse que viu no site da Câmara que seu cliente (Marcola, chefe da facção) deporia naquele dia, embora não estivesse marcado. Depois, disse que foi consultar processos no STJ e que, por já estar na cidade, decidiu ficar.
CURIOSIDADE: Perguntada por que ficou na CPI depois de saber que seu cliente não iria depor e por que solicitou o CD, respondeu: "Por curiosidade, só isso".
BOA AÇÃO: Maria Cristina não conseguiu explicar por que tinha interesse na gravação. Mas revelou que pagou o táxi que a levou, juntamente com Sérgio Wesley e Arthur Vinícius, para o shopping onde foram feitas as cópias, também pagas por ela (R$18).
IMAGENS: Perguntada se foi a uma lanchonete da Câmara com Sérgio e Arthur, onde teriam negociado o pagamento das gravações, ela disse que entrou no local acompanhada dos dois. Mas as imagens do circuito de TV mostram que eles entraram separadamente.
CD: Ela negou ter recebido uma cópia do CD no shopping, mas foi contrariada pelo técnico de som e por dois funcionários da loja onde foram feitas as reproduções. Depois, admitiu ter ficado com um CD.
E-MAIL: A advogada negou ter respondido um email enviado a ela por Arthur. Disse que foi sua secretária que usou o e-mail de sua filha. Os deputados então mostraram sua assinatura na mensagem (Cris).
NOVO FUNCIONÁRIO: No email de resposta, ela pede que Arthur remeta o HC (hábeas-corpus) em andamento. A CPI acredita que trata-se de um código e que a mensagem tenha tido o objetivo de negociar a segunda parte do suborno. Ela deu outra explicação: "Queria contratar o Arthur para que acompanhasse o andamento dos meus processos". A resposta provocou gargalhadas dos parlamentares.
HONORÁRIOS: Maria Cristina negou que Marcola pertença a uma facção criminosa e disse que ele foi espancado na prisão. Disse não ter medo. Depois, contou que a tia de Marcola, Maria Aparecida, é quem paga seus honorários (R$2 mil), mas negou-se a falar sobre ela, com a seguinte desculpa: "Não posso dar o endereço dela. Além de ser processada, posso ser morta!"
VISITAS: Ao tentar descolar sua imagem da facção criminosa, Maria Cristina disse que era uma advogada ocupada e que não freqüentava delegacias e presídios. Mais tarde, disse que visitou Marcola, em março deste ano, numa delegacia. E, depois, em presídios.
CONSELHO: Maria Cristina diz que não concordava com a abordagem de Sérgio Wesley ao técnico de som e que chegou a alertá-lo que a ação era "uma roubada". Sérgio desmentiu: "Se isso é roubada porque ela foi junto a pagou a confecção da fita?".
TV: Em entrevista à TV Globo, semana passada, Sérgio Wesley disse que não esteve no shopping. Depois, alertado sobre as imagens do circuito interno, mudou de versão. "Era uma estratégia de marketing, de defesa. Não tenho experiência com a mídia".
ADVOGADO: Maria Cristina disse que decidiu fazer ela mesma sua defesa porque o colega que procurou cobrava muito caro. Sérgio Wesley contratou o mesmo advogado e disse que ele nada cobrava.
Comissão viajará a São Paulo para ouvir depoimento de Marcola
Livro contábil de facção revela compra de armas e pagamentos a advogados
BRASÍLIA. A CPI do Tráfico de Armas decidiu ontem mandar uma comissão a São Paulo para o depoimento de Marcos Camacho, o Marcola, chefe da facção que comandou os atentados. Após um debate acirrado, a maioria dos integrantes considerou que ouvir Marcola no Congresso poderia pôr a Casa em risco e que seu depoimento só lhe daria mais publicidade.
O depoimento ainda não tem data. Segundo o presidente da CPI, Moroni Torgan (PFL-CE), deve acontecer no Fórum de São Paulo, acostumado a audiências de presos perigosos. As outras alternativas são o presídio de Presidente Bernardes, onde Marcola está preso, ou a sede da PF em Brasília.
Ontem, a CPI divulgou uma cópia do livro contábil da facção mostrando compras de armas, pagamentos a advogados, gastos com enterros e até pagamento de 13º salário. O livro-caixa foi apreendido pela polícia paulista e tem o balanço de dezembro de 2004 e janeiro e fevereiro de 2005. Em dezembro de 2004, a facção pagou R$66 mil por cinco fuzis - um AR-15, dois Rouger e dois AK-47. Nesse mês, a facção recebeu R$442 mil e gastou R$285 mil (saldo de R$158 mil).
Informação obtida com suborno
Dois dias antes de ordenar os atentados em São Paulo, o chefe da principal facção criminosa do estado, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, foi informado dos planos da polícia paulista para os principais chefes do grupo criminoso que comanda, inclusive sobre a decisão de transferir oito deles para um presídio de segurança máxima. Dois advogados dos bandidos, Sérgio Wesley da Cunha e Maria Cristina de Souza Rachado, foram acusados de comprar, no dia 10 de maio, dentro da Câmara dos Deputados, cópias do depoimento de dois delegados de São Paulo, em sessão secreta da CPI do Tráfico de Armas. Para ter a gravação, os advogados dos criminosos pagaram suborno de R$200 a Arthur Vinícius Silva, funcionário terceirizado da Câmara.
No depoimento, os delegados Rui Ferraz e Godofredo Bittencourt fizeram revelações que, por causa do suborno do funcionário da Câmara, foram repassadas ao criminoso.
Arthur está sob proteção da Polícia Federal.