Título: MOLÉCULAS DE GÁS NÃO TÊM IDEOLOGIA
Autor: David Zylbersztajn
Fonte: O Globo, 26/05/2006, Opinião, p. 7

Em tempos de tão variada atualidade, a questão do gás natural da Bolívia ocupou grandes espaços de discussão. Uma discussão que cozinhou, no mesmo tacho, questões técnicas, diplomáticas e ideológicas.

Nos últimos cem anos, a Bolívia foi objeto de diversos tratados. O mais conhecido deles é o Tratado de Petrópolis (onde se situavam as representações estrangeiras no Brasil), de 17 de novembro de 1903, que culminou com a incorporação do Território do Acre. Apesar da notável articulação diplomática do Barão do Rio Branco, a assinatura foi precedida de vigorosas demonstrações de força, com mobilização de tropas federais, que se deslocaram para o Acre, em defesa dos seringueiros brasileiros. Um articulista da época, referindo-se ao Barão, afirmou: "Temos um Homem no Itamaraty."

Em 1958, durante o governo JK, o Acordo de Roboré teve a finalidade de atualizar o tratado de 1938, onde, pela primeira vez, tratou-se da exploração, pelo Brasil, dos recursos petrolíferos bolivianos. Os principais entraves até a assinatura do Tratado foram as fortes objeções bolivianas à participação da Petrobras nas atividades de exploração de petróleo em solo boliviano. Tão fortes eram estas resistências que o Código de Petróleo Boliviano, de 1956, ressalvava o impedimento de capitais estatais e paraestatais estrangeiros na indústria petrolífera boliviana. Apesar das pressões da diplomacia brasileira, esta ressalva não foi suprimida. E a Petrobras, também naquela época, foi impedida de participar da exploração de petróleo na Bolívia.

Para reforçar o papel do petróleo na conturbada história recente da Bolívia, entre 1932 e 1935, a Guerra do Chaco teve como causa principal a descoberta do petróleo em áreas de disputa entre Bolívia e Paraguai, no sopé dos Andes. O saldo deste conflito foi a morte de 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios.

Cerca de meio século depois, após a fixação das normas entre os países, da modernização das relações comerciais entre nações, da postura global das melhores e reconhecidas práticas negociais, Brasil e Bolívia assinaram, em 1993, no governo Itamar Franco, os termos definitivos para a construção do gasoduto Bolívia-Brasil. Como praxe internacional, e por incontornáveis e evidentes características físicas, os acordos de exploração e venda de gás natural, através de dutos, criam vínculos indissociáveis entre os países envolvidos. Mas, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, ao longo do tempo a dependência do fornecedor é crescente em relação ao comprador. Exemplo marcante foi a construção do gasoduto ligando a Rússia (à época, União Soviética) à Europa. Os Estados Unidos procuraram insistentemente boicotar a construção deste gasoduto, alegando o provável fechamento das válvulas como forma de chantagem soviética. A realidade mostrou, no entanto, que um eventual corte de fornecimento privaria a Rússia de sua maior fonte de divisas. O mesmo ocorre com o gás da Argélia, que abastece a França. Mesmo a Bolívia, que por cerca de trinta anos abasteceu, sem interrupção, a Argentina, procurou, desesperadamente, a alternativa brasileira quando do término do fornecimento à Argentina.

Quando Secretário de Energia do estado de São Paulo, na gestão de Mario Covas, participei de diversas tratativas e negociações voltadas à conclusão do acordo com a Bolívia. Procurávamos obter um acordo justo e equilibrado. As negociações foram duras e mesmo acirradas, tanto em relação ao governo boliviano quanto em relação à Petrobras. Foram negociações técnicas, desprovidas de conteúdo político, apesar da enorme importância dada pelos governos envolvidos. Chegou-se a um valor de equilíbrio, adequado às pretensões bolivianas e à capacidade de pagamento do mercado consumidor, garantindo adequados níveis de competitividade e rentabilidade através do uso do gás importado.

Os eventos protagonizados recentemente pelo presidente boliviano revelam um obscurantismo irresponsável. Não existe ideologia em uma molécula de gás. Assim como não existe idioma ou nacionalidade nestas moléculas. A soberania de uma nação em relação aos seus recursos minerais será dada com a otimização de resultados para a sociedade. O estabelecimento de regras estáveis, duradouras e transparentes é o caminho adequado ao melhor aproveitamento das riquezas de um país. Contratos são para ser respeitados, e não rasgados e, sendo uma relação multilateral, podem ser renegociados a qualquer tempo. Não questiono o direito de qualquer Estado declarar a nacionalização de suas reservas ou de empresas. Que pague pelas conseqüências. E pelos ativos nacionalizados.

No entanto, o uso desnecessário de força militar revela a face ridícula e inconseqüente dos atos do presidente boliviano. Não se trata de dizer o que deve fazer uma nação estrangeira. Mas, sim, de avaliar e rever as relações diante de um país que irá sofrer, por muitos anos, as conseqüências de um ato eleitoreiro. Quanto às alternativas para o Brasil, neste momento, são inexistentes. Como disse um alto funcionário do governo, nosso país foi pego de "calças curtas".

DAVID ZYLBERSZTAJN foi diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e é professor do Instituto de Energia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.