Título: Não caiam em tentação
Autor: JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA
Fonte: O Globo, 28/05/2006, Opinião, p. 7

Que me perdoem os maliciosos, os astutos, os argutos e os manhosos; peço desculpas aos espertos, aos sagazes, aos finos e aos sutis; mas, francamente, nada se ganha com práticas, propostas e atitudes de viés neomercantilista, reflexos de uma cultura ou de uma mentalidade que privilegia, seja o Estado hobbesiano, seja setores concentradores de renda, em detrimento do bem-estar da sociedade e especialmente dos que estão dela parcial ou totalmente excluídos.

O mercantilismo dos séculos XVI e XVII, que floresceu na Espanha com a ênfase no entesouramento dos metais preciosos pilhados na América do Sul e se tornou a doutrina econômica vigente na França de Colbert, incorporava, ainda que de forma embrionária, todas as políticas e medidas cuja exacerbação viria a caracterizar a conjuntura internacional no período entre guerras, aprofundando e prolongando a Grande Depressão dos anos 30.

Protecionista empedernido, centralizador e autoritário, Colbert fez escola ao assentar princípios e organizar processos em que o papel central do comércio consistia em acumular riqueza para financiar o desenvolvimento e a política externa do absolutismo. Seus seguidores, convencidos de que cabe aos governos nacionais exercer controle sobre o comércio e a indústria de forma a promover a prosperidade, entendem que o principal objetivo comercial do Estado moderno é amealhar divisas, e recorrem a subsídios, quotas de importação e tarifas ¿ instrumentos alegadamente conducentes a uma melhora das condições da economia doméstica.

Fazer uso desses instrumentos para produzir saldos na balança de comércio implica transferir custos para os parceiros externos, bem como transferir renda entre setores, agravando desigualdades. Numa época em que a industrialização criava postos de trabalho (mais ou menos qualificados) e a expansão do comércio assegurava padrões de consumo compatíveis com o perfil da oferta, ainda se justificava a tentativa, sempre vã, de alcançar o desenvolvimento sustentável de forma autárquica, na base da substituição de importações à outrance. Tal estratégia pressupunha recursos naturais abundantes, investimentos produtivos idem e mercados abertos, além de controle da inflação, disciplina fiscal, desoneração da produção e redução de custos.

Se, porém, o sistema capitalista já comporta falhas de distribuição e custos sociais apreciáveis, a interferência do poder público para eleger, sem consulta à sociedade, setores merecedores de benefícios especiais só contribui para a concentração de renda.

Num mundo cada vez mais interdependente ¿ mas muito menos multilateral do que poderia ser ¿ nenhum governo pode se dar ao luxo, ou melhor, ao equívoco de cair na tentação neomercantilista, sob pena de trair o objetivo permanente e prioritário do Estado, que é o de crescer com justiça social, resgatando aquela parcela substancial da população condenada a viver da mão para a boca. Governos democráticos e atentos aos interesses nacionais têm a obrigação de cortar gastos para defender a moeda e preservar o poder de compra das camadas da população de baixa renda. Mas precisam igualmente promover a redução dos custos, tanto para a produção quanto para o consumo, bem como incentivar a concorrência, que proporciona ganhos de produtividade, modernização do parque produtivo, elevação do nível de emprego e ajuste dos preços relativos.

Felizmente, não vivemos na França de Colbert nem nos Estados Unidos dos anos 30. Com o Gatt e a aceitação virtualmente universal dos compromissos negociados na Rodada Uruguai, não há riscos sistêmicos para um multilateralismo que, apesar de incompleto e excludente, assegura o livre comércio sob regras consensuais. Infelizmente, porém, passados já mais de vinte anos desde que se esgotou o modelo de substituição de importações, os desequilíbrios sociais, regionais e setoriais adquiriram, em algumas economias, proporções tsunâmicas, forçando o esgarçamento do tecido social e ameaçando a sustentação das instituições democráticas.

O tempo não é de ganhar discussões ou de se enredar em esparrelas armadas por prepostos de setores concentradores de renda com o objetivo de sustentar preços. Impõe-se cumprir os compromissos, fortalecer as regras e disciplinas que garantem o fluxo desimpedido de todos os bens intercambiados entre os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), e permitir que o comércio externo, por liberalização gradual, contribua para uma melhor distribuição da renda e, assim, para a redução da pobreza e das desigualdades.

JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA é cônsul-geral do Brasil em Nova York e foi representante permanente na União Européia.