Título: IMPÉRIO DA HIPOCRISIA
Autor: Josefina Guedes
Fonte: O Globo, 28/05/2006, Opinião, p. 7

A Organização Mundial do Comércio tem sido um grande fórum de desequilíbrio ao longo dos seus 59 anos em relação às questões de acesso a mercados, tanto de produtos agrícolas quanto industriais, para os países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos.

Ao final de cada rodada negociadora a história é sempre a mesma: os países em desenvolvimento, ávidos por mais e melhor desenvolvimento, tendem a ceder em tarifas e em acesso a novos setores da economia aos países ricos, acreditando no sonho de se tornarem mais ricos e em maior destaque no cenário internacional.

Nos últimos anos, a OMC desempenhou um papel muito importante como fórum de recurso para todas as partes contratantes em relação a normas. Mas quanto ao desenvolvimento e à eqüidade do comércio entre as nações, está longe de alcançar.

O princípio que norteia o Acordo Geral da OMC, o do livre comércio, só existe no papel. O tratamento preferencial para as nações em desenvolvimento e menos desenvolvidas também só faz parte do arcabouço jurídico, mas nunca funcionou de fato.

Quando olhamos os resultados de todas as nove rodadas negociadoras da OMC ¿ incluindo a de Doha ¿, podemos concluir, facilmente, que o preço pago pelos países em desenvolvimento para participar desse clube de ricos tem sido muito alto.

A atuação dos mais fracos representa, muitas vezes, o fim de sua estratégia de desenvolvimento sustentável, que deve estar fundamentado na pesquisa tecnológica, na elevação do grau de instrução da população e no maior acesso a produtos de ponta ¿ e não somente direcionado para vender produtos primários de valor agregado baixo.

Tal postura por parte dos países ricos parece demonstrar que não somos capazes de desenvolver tecnologia; ou que não devemos desenvolver produtos de maior valor agregado ¿ diferentemente da política industrial que eles praticaram ao longo de muitos anos para se tornarem ricos. Tais países tiveram suas tarifas em níveis ideais de proteção até suas indústrias estarem solidificadas e com alto grau de desenvolvimento tecnológico. Ou seja, até adquirirem maturidade para concorrência.

A ¿Declaração de Hong Kong¿ estabelece que um avanço em acesso a mercados na área industrial deve ser acompanhado da mesma medida para os produtos agrícolas. Além disso, o princípio do tratamento especial e diferenciado deve ser respeitado.

Contudo, quando avaliamos as propostas, nos deparamos com uma redução de mais de 50% nas tarifas de produtos industriais para os países em desenvolvimento, contra uma redução de apenas 29% nas tarifas de produtos agrícolas. Só que as tarifas dos produtos agrícolas variam entre 407% na Europa, 439% nos EUA e 1.705% no Japão, por exemplo.

As bases negociadoras acima demonstram de forma clara a desigualdade quando os países ricos propõem cortes significativos nas tarifas do setor industrial dos países em desenvolvimento, sem qualquer contrapartida real de acesso a mercado para nossas exportações agrícolas.

A hipocrisia reina. É inacreditável que assinemos o acordo até o final deste ano. Negociadores brasileiros repetiram, inúmeras vezes, que é preferível não termos acordo algum a levarmos adiante um mau acordo.

Outro setor alvo de defesa forte por parte dos países ricos é o têxtil. A indústria privada dos EUA e da Europa apresentou proposta a seus governos tentando excluir todo o setor da aplicação da fórmula de redução tarifária, na atual rodada, o que resultará numa grande exceção à regra. Resta saber quais setores econômicos o nosso governo tratará como sensíveis.

Em relação ao setor de serviços, não podemos deixar de prestar atenção no que acontece no mundo. Grandes corporações multinacionais vêm fazendo lobby para que os países em desenvolvimento abram seus serviços públicos essenciais ou com participação estatal, geralmente nas áreas de necessidades básicas, como, por exemplo: saúde, educação, sistema postal, água, telecomunicações, distribuição de energia e transportes.

É claro que muitos países em desenvolvimento já liberalizaram parcela expressiva desses serviços por pressão do Fundo Monetário Internacional ¿ por meio de privatizações.

Outros setores importantes, principalmente para os Estados Unidos em termos de política global de controle, são os de serviços financeiros, de óleo e gás, além de educação, saúde, distribuição de água e serviço postal.

Quando pensamos no setor de serviços como produto de negociação, temos que ter em mente todos os setores acima citados, pois são fundamentais à nossa sobrevivência. É lógico que o setor de serviços é muito mais amplo do que os demais. Contudo, cabe-nos focar nos estratégicos, pois envolvem questões de segurança de Estado e não somente comerciais.

Assim, temos que avaliar as reais moedas de troca que estão na mesa. A questão não é somente agrícola e industrial. O setor de serviços, envolvendo áreas estratégicas, pode ser uma moeda de troca pela agricultura muito mais danosa ao país, pois colocaremos em xeque setores de segurança nacional favorecendo grandes grupos estrangeiros que só têm um único objetivo: o lucro.

Precisamos avaliar que papel deveria ter a OMC para os países em desenvolvimento, à luz dos resultados das rodadas negociadoras de todos esses anos.

O fortalecimento da OMC como órgão normativo e julgador deve ser o enfoque central das negociações multilaterais. Os resultados dos painéis do Órgão de Solução de Controvérsia têm demonstrado que o descumprimento dos acordos, principalmente pelos países desenvolvidos, resultou em decisões muito importantes para os que estão em desenvolvimento.

A OMC deveria ser o órgão regulador e julgador que permita a todas as partes terem participação igualitária, e não um organismo que dê a chance de os países ricos aproveitarem cada rodada para inserir novos temas e assumir o controle total.

JOSEFINA GUEDES é economista.