Título: CARCEREIROS CRIAM REGRAS PRÓPRIAS NAS PRISÕES
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 28/05/2006, O País, p. 13

Códigos de convivência com os presos valem mais do que a lei. Apenas 4% da categoria respondem a sindicância

Sempre que um agente penitenciário entra numa galeria, os presos gritam ¿vai chamar¿. Essa gíria de cadeia, que serve de alerta para o risco de inspeções nas celas, é um dos códigos de convivência entre presos e funcionários. Os agentes toleram o aviso, desde que não sejam desmoralizados pessoalmente. Se isso acontecer, o culpado vai para o isolamento. Os muros dos presídios fluminenses escondem um mundo à parte, onde as regras criadas pela rotina valem mais do que a lei.

O sistema penitenciário do Rio de Janeiro abriga 24 mil presos. A responsabilidade pela guarda dessa massa carcerária está nas mãos de 1.500 agentes e inspetores penitenciários que trabalham diretamente¿no cadeado¿, abrindo e fechando as celas. O número representa apenas um terço da categoria. Os demais estão desviados de função, em gabinetes de parlamentares ou na burocracia administrativa.

Separação leva em conta a facção criminosa

A maior parte não passou por um treinamento adequado. Confia mais nas regras internas do que na previsão legal. Embora a Lei de Execução Penal determine que os presos sejam classificados e separados pelo crime cometido e pelo tamanho da pena, a forma de separação mais comum leva em conta a facção criminosa. Mesmo que o interno declare não pertencer a alguma delas, o sistema cuida de engajá-lo, valendo-se de dados como local de moradia. Na prática, é o próprio aparelho de estado cuidando de organizar o preso por facção.

Os agentes alegam que, se o critério não for levado em conta, a mistura de presos de facções distintas pode provocar conflitos violentos. A Lei de Execução Penal fixa também critérios para punição de presos, incluindo o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Na prática, o isolamento é uma decisão individual do agente, tomada de acordo com a situação de cada preso.

Para explicar a ausência de rebeliões recentes no Rio, os agentes sustentam que, em vez de apenas vigiar para não fugirem, procuram ouvir os pleitos dos presos. Um dos mais insistentes é o credenciamento de visitantes, cujas senhas são distribuídas pela administração carcerária.

¿ No início de minha carreira, achava que o preso não tinha direito a nada. Era muito odiado aqui. Hoje, o convívio com eles me venceu. Procuro ouví-los e respeitá-los ¿ diz Marcos Bahia, de 43 anos, chefe de Segurança da Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira, em Bangu.

A crise de segurança em São Paulo, como já ocorreu em rebeliões anteriores, pôs o agente penitenciário na berlinda. Há quem aposte na culpa de alguns desses profissionais pela entrada de celulares e drogas nas prisões brasileiras. O vice-presidente do Sindicato dos Servidores da Secretaria de Justiça do Rio (agentes penitenciários), Gutembergue de Oliveira, alega que a sua categoria não pode ser a única responsabilizada.

¿ Diariamente, caminhões entram nos presídios com milhares de quentinhas. Quem fiscaliza o que está dentro delas? Além disso, advogados e religiosos não são vistoriados ¿ queixa-se Gutembergue, há 12 anos na profissão.

Não existe uma política de formação de agentes penitenciários. As práticas são transmitidas de geração para geração. Uma pesquisa mostrou, em 2002, que o perfil do agente se aproxima das características dos presos: a maioria, ao declarar a cor, se identificou como preta ou parda. Muitos agentes moram em bairros pobres da periferia e no Grande Rio. Nas prisões, eles utilizam as gírias do preso.

Contagem é o momento de maior tensão na rotina

O momento de maior tensão, na rotina de um agente que trabalha no cadeado, é a contagem de presos, ou ¿confere¿, feito no início do dia ou no fim da tarde. A ausência de um preso leva o agente a responder a uma sindicância.

No Rio, os agentes penitenciários que respondem a sindicância (cerca de 200) correspondem a apenas 4% do total da categoria. Se levados em conta apenas os agentes que trabalham nas unidades, o percentual cresce para 13%. A Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) não comunica ao Ministério Público os casos suspeitos envolvendo os seus funcionários.

A Seap só pode punir pelo prazo de 30 dias, segundo a legislação em vigor. O tempo médio de uma sindicância é de três meses. Se os casos exigirem punições mais graves, a Seap é obrigada a remetê-los para a Secretaria de Administração e Reestruturação (Sare), onde são apurados em inquéritos administrativos cujo o tempo médio de varia em torno de dois a cinco anos.