Título: BALELA MÉDICA
Autor: MARCUS VINICIUS FERREIRA
Fonte: O Globo, 29/05/2006, Opinião, p. 7

Aacupuntura vem se tornando cada vez mais presente na medicina ocidental. Em 1997, um simpósio promovido pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA declarou existirem provas suficientes do seu valor para expansão de seu uso pela medicina convencional.

No Brasil, uma portaria interministerial em 1988 regulamentou a acupuntura no Sistema Único de Saúde, determinando que somente médicos pudessem exercê-la na rede pública. Foi reconhecida como especialidade médica em 1995. Então surgiram inúmeros cursos de acupuntura de fim de semana, oferecendo uma nova possibilidade profissional para a classe média desempregada.

Consultórios de acupunturistas leigos se multiplicaram. Outros conselhos de profissões da área da saúde resolveram, mesmo contra a lei, adotar a acupuntura como tratamento.

A lei deveria determinar que atos similares fossem exclusivos dos médicos, para defender a população dos riscos implícitos a tratamentos sem diagnóstico causal e que invadam o interior do nosso corpo, podendo atingir órgãos nobres.

Já foram descritos vários casos fatais na prática leiga da acupuntura, causados pela introdução de agulhas em pulmão e coração, lesões de tendões e nervos, além da contaminação por doenças infecto-contagiosas. Porém, a profissão médica, por incrível que pareça, não tem sua regulamentação definida por lei.

No caso específico da acupuntura, ainda existe uma outra alegação para a prática por não-médicos: ela seria uma medicina ¿energética¿, com diagnóstico próprio. Pura balela. Este conceito de medicina energética já foi devidamente desmistificado, tanto pela análise cuidadosa da antropologia médica, quanto pelos estudos científicos de neurociência, que comprovam que a acupuntura age por meios neuro-humorais.

No fundo, este discurso serve para criar novos campos profissionais dentro de uma prática que deveria ser exclusivamente médica. Pois bem, o Conselho Nacional de Saúde determinou que a acupuntura, como outras medicinas ¿alternativas¿, seja executada no SUS por não-médicos.

O ministro da Saúde recentemente referendou esta determinação. Em todas as situações onde os médicos se levantam para defender sua profissão, eles são tachados de corporativos, mas o fato é que, na prática pública, médicos continuarão exercendo a acupuntura. Na prática privada, quem pode pagar geralmente procura um profissional com melhor formação, neste caso, o médico.

Então, por que a grita? Porque não podem existir dois tipos de pacientes: os de primeira categoria, atendidos por médicos, na rede privada, e os de segunda categoria, que terão medicina de segunda classe, sem médicos, na rede pública.

Essa discussão sobre a desregulamentação da acupuntura abre, na verdade, a porta para uma discussão mais ampla sobre a desregulamentação da medicina pública no Brasil. Democratizar o acesso à saúde não pode e não deve significar descer o nível do atendimento.

MARCUS VINICIUS FERREIRA é médico.