Título: A incapacidade é um adjetivo
Autor: Paulo Eduardo Chieffi
Fonte: O Globo, 02/06/2006, Opinião, p. 7

A inclusão do deficiente nas empresas com mais de 100 funcionários é uma das atuais imposições feitas pelo governo federal, através da lei de cotas. O cumprimento dessa lei se realiza pela maioria das empresas com o "ar" de obrigação, já que não são estimulados os princípios de conscientização. Com isso, realizam o processo sem se preocuparem com a questão da "inclusão social". Para as empresas que apenas cumprem com a lei, é realmente muito difícil lidar com a obrigação de responderem a algo imposto - o não-cumprimento resulta em multa. Confesso que o sentimento de obrigação nos traz uma imagem ruim e essa não deveria existir quando nos referirmos a questões que incorporam direitos morais e éticos de cidadania.

Inclusão social é um dever e um compromisso de todos nós. A empregabilidade de pessoas com deficiência é uma questão de dar oportunidade. Essas pessoas, que denominamos deficientes, são capazes de desenvolver as mais diferentes tarefas e atividades quando preparadas para atuar no mercado de trabalho. Por isso, é de extrema importância um treinamento e a capacitação tanto dessas pessoas como também daquelas que irão conviver e trabalhar com elas.

Para adequação de um treinamento com excelência é preciso primeiramente que haja palestras de sensibilização para que a empresa que estará recebendo essas pessoas possa ter consciência das maneiras de lidar e abordar o tema. Uma equipe especializada em recrutamento prestará suporte para identificar a capacidade e o talento de cada pessoa que estará ocupando o posto de trabalho. É importante ainda ressaltar a acessibilidade arquitetônica de acordo com a necessidade de cada um.

Segundo o IBGE-Censo-2000, 15% da população brasileira apresentam algum tipo de deficiência. Esse valor corresponde aproximadamente a 25 milhões de pessoas. Se pararmos para pensar que de cada seis pessoas (100%) uma (15%) tem algum tipo de deficiência, duvidaríamos desses números, já que não vemos essa demanda circulando nas ruas e inclusas na sociedade. Devido à falta de atenção dos setores públicos na questão da acessibilidade dos centros urbanos, cerca 70% desses se tornam excluídos do contexto de oportunidade no mercado de trabalho e lazer. O fato de o Brasil ser um país subdesenvolvido também interfere na questão do uso de tecnologias assistidas, como órteses e próteses que são facilitadores na adaptação das pessoas com deficiência para a vida.

A mudança dos conceitos é estabelecida a partir do momento que nos permitimos aceitar essas pessoas como seres vivos aptos, já que a incapacidade é um adjetivo não para pessoas quem têm algum comprometimento físico, visual, auditivo ou mental, mas sim para pessoas que não se permitem acreditar nos seus próprios potenciais.

PAULO EDUARDO CHIEFFI AAGAARD (PAUÊ) é o primeiro surfista biamputado do mundo e foi campeão mundial de triathlon em 2002.

Eles não sabem o que fazem

Se a boa-fé levou as pessoas, inclusive os políticos envolvidos, a formular um Estatuto da Pessoa com Deficiência, devem ser perdoadas porque não sabem o que fazem. Não é possível que conheçam a história de quem se viu rejeitado e ignorado e, sem mágoa ou rancor, construiu ou reconstruiu a si mesmo a partir de uma condição desfavorável, muitas vezes absolutamente. Foi esta a principal conquista das pessoas com deficiência.

É preciso perdoar as pessoas de boa-fé porque a rejeição e ignorância manifestadas por elas não são frutos de convicções filosóficas ou políticas, e sim expressões culturais milenares, herdadas por elas e por nós. Um pecado original.

Sou um neodeficiente físico (2003) e, infelizmente, só tomei conhecimento da proposta do estatuto, como de muitas outras coisas, por agora. Não importa que ele esteja em discussão há muitos anos e que ninguém tenha questionado sua conveniência. Eu o faço hoje.

Evidentemente, já que este problema chamado estatuto foi colocado, quem estiver verdadeiramente interessado na defesa dos direitos das pessoas com deficiência precisará trabalhar dobrado, em duas frentes, para não ver tais direitos prejudicados. Será um trabalho aparentemente contraditório, pois ao mesmo tempo em que deverão ser propostas correções no estatuto, para se evitar o desastre, o combate à sua consecução deverá ser implacável.

O combate deverá ser implacável porque o status de tuteladas que o simples nome "estatuto" confere às pessoas com deficiência é uma indignidade, e não podemos admitir que as conquistas obtidas, especialmente a superação da baixa auto-estima, sejam ignoradas e sejamos tutelados e classificados como cidadãs e cidadãos de segunda classe. Digo isso sem desmerecer as crianças, adolescentes e idosos, que são pessoas indefesas, pela idade ou condição física, precisando ser protegidas por estatutos.

Nós, pessoas com deficiência, temos que nos proteger é dos que procuram se aproveitar de uma fragilidade conceitual ainda existente no segmento e nos empurram conceitos equivocados de caridade e piedade.

Se o senador Arns e os outros políticos que tomaram alguma iniciativa no sentido de resguardar nossos direitos com um estatuto agiram de boa-fé, é preciso avisá-los de que a legislação existente já cumpre este papel, colocando-nos em igualdade de condições com os demais cidadãos, e que os sentimentos de dó e compaixão que compõem sua boa-fé são, na verdade, manifestações de um pecado original. É preciso dizer para eles se levantarem e virem para o nosso meio, e não o contrário, porque não podemos excluir nossos companheiros cadeirantes, impossibilitados de se levantar, e nossa causa é ecumênica.

Mas se por trás dessas ações o que existe é o oportunismo político ou a busca de atendimento a necessidades específicas, como as dos excepcionais atendidos pelas APAEs, por melhor que seja este fim, devemos rechaçar os oportunistas e a tutela do Estatuto da Pessoa com Deficiência que querem nos impingir e, então, justificadamente, propor um Estatuto do Excepcional, este sim um cidadão indefeso e desprotegido.

Além disso, o respeito às leis não virá com a simples substituição das que temos, qualquer que seja o novo instrumento legal, e só ocorrerá se existirem punições rigorosas e vontade política para aplicá-las. É isso que falta. Ao começar tudo de novo, e com as falhas constatadas, este estatuto do coitadinho certamente será tão descumprido, ou mais, do que as leis em vigor.

Finalmente, se, como alguns acreditam, um estatuto reúne "todas as necessidades e direitos de um segmento, para que possa ser respeitado em sua dignidade, tenha garantida a chance de protagonismo na sociedade e respaldo no exercício de sua cidadania", vai ser preciso revogar a Constituição e fazer estatutos para negros, mulheres, gays etc.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência é a Constituição. Este estatuto agora proposto, motivado pela maldade do oportunismo político ou sentimentos de dó e compaixão da boa-fé equivocada, tem um pecado original.

ANDREI BASTOS é jornalista.

O respeito à lei só ocorrerá se existirem punições rigorosas e vontade de aplicá-las