Título: NA FRANÇA, RESISTENTES ATÉ A HITLER
Autor: Luciana Frões
Fonte: O Globo, 03/06/2006, Economia, p. 35

Empresa guarda vinhos do século XIX que nazistas não conseguiram saquear

BEAUNE (França). Luz fraca, silêncio, frio e umidade do ar elevada, beirando 90%. O subsolo do Castelo de Beaune, do século XV, guarda uma tradição de fabricar vinhos que está completando 275 anos. Nas adegas da empresa Bouchard Père & Fils, no coração da Côte D¿Or, estão parte da reputação dos vinhos da Borgonha e a busca pela perfeição. A empresa mescla a arte tradicional e métodos modernos, como o controle eletrônico da temperatura do ambiente.

As antigas paredes da maison também respiram história. Nas suas caves, em meio a milhares de garrafas de tintos e brancos que estão maturando ali há mais de 50 anos, existem centenas com data da primeira metade do século XIX. É uma coleção única no mundo de vinhos da Borgonha, que sobreviveu aos saques das tropas de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45). Para colecionadores, alguns deles chegam a valer milhares de euros.

O diretor-geral da Bouchard Père & Fils, Stéphane Follin-Arbelet, conta que essas garrafas centenárias, escondidas na parte inferior da adega, escaparam da pilhagem dos nazistas. A mesma sorte não tiveram outras casas tradicionais de regiões vinícolas da França, como em Bordeaux, Champagne e no Vale do Loire. No auge da ocupação alemã, milhões de garrafas desapareceram e foram mandadas para a Alemanha. Muitas famílias de produtores vinícolas organizaram uma espécie de Resistência paralela, para evitar que as adegas fossem arrombadas e seus tesouros levados.

¿ Eles faziam paredes falsas, mas lá dentro tinha muita mais coisa. Os franceses conseguiram salvar muitas garrafas, especialmente champanhe ¿ lembra Sérgio Cardoso, da Associação Brasileira de Sommeliers.

Cicerone da visita à cave, Follin-Arbelet é quem comanda a degustação dos vinhos da Bouchard Père & Fils ¿ que tem vinhedos em 130 hectares da região, sendo que 12 de Grands Crus e 74 de Primiers Crus. Ele ensina o ritual aos visitantes. Entre uma degustação e outra, sugere água para não confundir os oito vinhos testados (tintos e brancos). E pão, se necessário. Na taça, é preciso ainda observar o aroma e a cor do vinho.

Sobre os segredos para não cair em tentação e consumir todos os vinhos testados durante o seu ofício, o diretor-geral da maison ¿ onde na área de degustação crianças não entram ¿ dá a receita para evitar vícios:

¿ É preciso cuspir sempre os vinhos da degustação (em recipientes próprios na sala da adega). E tomar mesmo somente os últimos vinhos que são provados ¿ afirma Follin-Arbelet.

Apreciar, mas com moderação.

(*) O repórter viajou a convite do governo da França