Título: Dívida em queda
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 07/06/2006, Economia, p. 22

Durante mais de uma década como candidato a presidente da República, Lula da Silva sempre disse que não pagaria a dívida externa ou então que só pagaria após auditoria. Hoje ele paga antes da hora e tem sido um bom negócio. Nesta semana mesmo, o Tesouro do governo Lula anunciou a recompra de papéis de longo prazo, mas com parcelas do principal a vencer nos próximos dois a três anos. Ele está limpando os próximos anos.

Uma das medidas do passivo externo é a dívida pública no exterior descontando-se as reservas cambiais. Por essa medida, a dívida do Brasil caiu de US$80 bilhões, em 2003, para US$20 bilhões, em maio de 2006, diz o Banco Credit Suisse. Outra medida é a dívida líquida do setor público não financeiro; descontando-se as reservas e as dívidas dos bancos públicos. Aí ela é de apenas US$13 bilhões. A dívida total, pública e privada, é bem mais alta, mas já caiu bastante. Saiu de US$215 bilhões para US$140 bilhões, calcula o banco. ¿Nesse conceito, a dívida pública externa já estaria protegida contra riscos de não pagamento oriundos de eventual escassez de moeda forte¿, diz um texto do Credit Suisse.

Os números são bons, mas, neste campo ¿ como, aliás, em todos os outros campos, principalmente o de futebol ¿, é preferível evitar o salto alto. O governo tem feito a coisa certa, que é administrar o passivo externo aproveitando as brechas. Em vez de carregar uma reserva que é mal remunerada e uma dívida de alto custo, ele tem usado parte das reservas para quitar a dívida já. Se e quando é necessário, ele lança papéis nos momentos bons do mercado internacional. Isso vinha sendo feito desde o final do governo Fernando Henrique e se intensificou muito no atual governo. Aliás, a política econômica de administração de dívida interna e externa é tão parecida com a do governo anterior que, neste caso, justifica-se aquele ato falho do ministro Walfrido dos Mares Guia, que chamou o presidente Lula de Luiz Henrique. Faz sentido.

Isso não afasta os riscos de problemas com a atual incerteza internacional. Os mercados são todos conectados, há credores externos na dívida interna. Quando eles perdem em qualquer outro lugar do planeta, começam a vender posições para parar os prejuízos. Aí outros países, por mais sólidos que sejam seus fundamentos, podem tremer também.

O mundo anda em tempos de incerteza. Diariamente o mercado financeiro internacional estranha declarações do novo presidente do Banco Central americano, Bem Bernanke. Era de se esperar, depois de 18 anos com Alan Greenspan. Logo que Greenspan assumiu, também houve um estranhamento assim, uma saudade do super Paul Volcker. A crise de 87 na Bolsa de Nova York foi logo na estréia de Greenspan. Agora se repete o mesmo enredo; tomara que não tenha o mesmo episódio no mercado de ações.

Há, de fato, muitas razões para se ficar inseguro sobre a continuação daquele período de crescimento sem inflação que embalou o mundo nos últimos três anos. Alguns problemas se acumularam. Um deles foi o preço do petróleo, que triplicou no período. Qualquer novidade no mercado de petróleo provoca sustos, claro. A semana começou já nervosa pela ameaça do presidente do Irã de prejudicar o transporte de petróleo pela região do Golfo Pérsico. O Irã realmente tem uma posição estratégica.

A ameaça do aiatolá Ali Khamenei, feita no domingo, de que os atos dos Estados Unidos poderiam colocar o fluxo de energia na região em perigo é ainda mais dramática do que parece. Se for levada a sério. Ontem o petróleo caiu um pouco, mas se manteve acima dos US$72.

O Irã é hoje o terceiro maior exportador de petróleo. São 2,6 milhões de barris/dia num mundo que comercializa diariamente 38 milhões de barris (e consome 84 milhões). O destino principal de suas vendas é a Ásia; o Irã fornece, sobretudo, para China, Japão e Coréia. Para os Estados Unidos, atualmente, não fornece mais nada.

Mas o que assusta é a sua posição estratégica. Se o Irã decidir fechar o Estreito de Ormuz, fica muito difícil, para não dizer impossível, tirar petróleo do Golfo Pérsico. Essa região conflituosa há séculos é onde hoje se produzem 2/5 do petróleo que é comercializado mundialmente; cerca de 15 milhões de barris/dia. Não só os Estados Unidos têm que ficar seriamente preocupados com questões de fornecimento energético.

Os EUA são aquele consumidor viciado em petróleo, como disse o próprio presidente Bush. Assim, seu consumo chega a cerca de 20 milhões de barris/dia, dos quais importam 12 milhões de barris. Seu principal fornecedor é a Arábia Saudita, com 14% do que os EUA importam. Porém, da região (eles também compram do Iraque e do Kuwait) vêm 22% do total do que os americanos compram. Ou seja, fechar o canal seria parar as economias americana e mundial. Não é simples, nem parece lógico, mas, em clima de conflito crescente, a lógica é sempre a primeira vítima.

O Brasil faz bem em procurar reduzir toda a dependência e necessidade de moeda forte neste momento. Isso não vai nos colocar numa redoma de vidro, mas dá mais musculatura para enfrentar as ondas que estão se formando na economia mundial.