Título: CRISE E SOLUÇÃO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 10/06/2006, O País, p. 4

As 48 horas de crise que o Tribunal Superior Eleitoral provocou na política brasileira, além de ressaltarem a idéia de que não deveríamos ter uma Justiça específica para cuidar das eleições ¿ o Brasil é o único país no mundo que tem uma Justiça Eleitoral e, como se sabe, a única coisa boa que só existe no Brasil é a jabuticaba ¿ revelaram mais uma vez as fragilidades de nosso sistema partidário, reforçando o movimento a favor de uma reforma política. A tentativa é chegar a um consenso para a adoção do voto distrital misto, com lista fechada de candidatos, o financiamento público de campanha e, como objetivo de médio a longo prazo, a adoção do parlamentarismo, se possível já em 2010.

O senador Jefferson Peres, do PDT do Amazonas, um dos que pensam o país a longo prazo, anda tendo conversas ¿para conter essa marcha da insensatez¿, e acha que, com a adoção das cláusulas de barreira este ano, e a redução dos gastos de campanha, já estamos muito próximos do final desse processo.

Ele diz que o povo rejeitou o parlamentarismo em outro contexto, mas admite que a legitimação das reformas teria que vir por um referendo, ou por uma constituinte revisora, que já está proposta em uma emenda constitucional que tramita na Câmara.

A necessidade de reformar o sistema partidário é reconhecida por todos os especialistas, para que a fragmentação não se torne um fator a mais na disputa entre o Legislativo e o Executivo, que seria uma característica do presidencialismo.

Países como o Brasil, que resistem ao parlamentarismo e preferem votar no candidato e não no partido, poderiam adotar o semipresidencialismo, modelo de governo no qual o Congresso ganha papel mais relevante e que teria sido a base da proposta parlamentarista apresentada no plebiscito de 1993.

A preservação da eleição direta do presidente da República, segundo o professor da FGV Octavio Amorim Neto, fazia parte dessa preocupação.

Há um consenso de que a incoerência das alianças partidárias, que a lei da verticalização tenta coibir, tem causas anteriores. O sistema de voto proporcional personalizado, um dos poucos no mundo, favorece que a carreira política seja exercida como uma individualidade, e a liberalidade da legislação faz com que a relação do político eleito com o partido seja de distanciamento, tornando natural a troca de legendas de acordo com os interesses pessoais do candidato.

O ministro do Turismo, Mares Guia, lembra que a disputa entre os políticos começa dentro do próprio partido, nas eleições proporcionais, onde o maior adversário é o companheiro de partido, o que torna as campanhas eleitorais muito caras. A adoção do voto distrital misto, com lista fechada, seria uma solução para essa verdadeira autofagia política.

Ele critica a legislação das cláusulas de barreira, que pune o partido com a perda do Fundo Partidário, do tempo de TV e de cargos no Congresso, mas preserva o mandato dos políticos eleitos por ele. Já o candidato a senador pelo Rio Alfredo Sirkis, do PV, que também defende a reforma política com o voto em lista fechada, diz que liquidar os pequenos partidos, ¿dentre os quais se encontram algumas das raras lideranças programáticas ou ideológicas, é uma falsa solução, só vai piorar o quadro atual e introduzir tensões e frustrações que poderão se exprimir no campo extraparlamentar¿.

O sociólogo Hamilton Garcia, da Universidade do Norte Fluminense, acredita que há a necessidade de uma ¿revisão ética da massa ¿ de todas as classes ¿ do eleitorado em relação ao seu comportamento eleitoral, que, desprezando a representação, acaba por incentivar o insulamento quase exclusivo da classe política nos interesses privados, seus e dos grupos que o financiam¿.

Por outro lado, ressalta que também é preciso que o sistema partidário-eleitoral facilite a criação dessa nova mentalidade, por meio de uma legislação que propicie não só o controle dos representantes pelo representado, como também o autocontrole pelas elites partidárias.

Ao contrário de muitos críticos, ele considera que a adoção da lista fechada de candidatos é um avanço: ¿Hoje nenhum partido se responsabiliza pelos candidatos que escolhe em suas nominatas. As direções partidárias precisam ter controle efetivo sobre os partidos, e serem responsabilizadas por isto ¿ inclusive pela Justiça Eleitoral ¿ e o eleitorado tem que ser capaz de punir/premiar aqueles grupos que agem contra/a favor de seus interesses¿.

Garcia não se referiu a isso, mas há um movimento na internet para incluir na reforma política o sistema de ¿recall¿, através do qual um político pode ser cassado pelos eleitores em meio a seu mandato. Hamilton Garcia acha que ¿vivemos no pior dos mundos¿ pois parte do eleitorado julga que a corrupção não o atinge, ou porque, na informalidade, não paga imposto de renda, ou porque sonega.

Gosta de receber ¿presentes¿ dos políticos, mas não se questiona de onde vem o dinheiro que financia a ¿festa dos papais-noéis¿. Crê tirar proveito das fragilidades institucionais, mas fica inconsolável quando lhe faltam a saúde ou a segurança pública. E por aí vai a incapacidade intelectual de ligar uma coisa a outra".