Título: O CARIOCA DÁ A VOLTA POR CIMA
Autor: LUIZ PAULO CONDE
Fonte: O Globo, 10/06/2006, Opinião, p. 7

Em meio ao turbilhão político e econômico que tem sacudido o país nestes últimos tempos, uma notícia, vinda do Rio de Janeiro e veiculada pelos principais meios de comunicação, mostra-nos como é fantástica a capacidade dos brasileiros de dar a volta por cima e vencer situações de vida extremamente complexas. Em especial, os brasileiros que se encontram nas classes mais pobres, enfrentando todo tipo de adversidades para sobreviver num dos países mais injustos do planeta.

Refiro-me à inauguração, no último dia 8 de maio, do Museu da Maré, uma parceria do Ministério da Cultura com a ONG Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm). Um dos exemplos mais criativos e mais interessantes desta capacidade de transformar problema em solução, de preservar história e tradição, de não perder as esperanças jamais.

O trabalho do Ceasm com a população das comunidades do Complexo da Maré já é conhecido e respeitado pelos meios governamentais e empresariais do Rio de Janeiro e de outros estados brasileiros. Reflete a vontade política dos moradores da região, convencidos de que o seu futuro lhes pertence e deles depende para ser melhor.

A palavra-chave é parceria, nunca submissão.

Deste conceito nasceu a idéia do museu que conta a história da ocupação da área, destaca tradições e culturas ali criadas, mostra a realidade como ela é, inclusive o convívio com a violência. História para os mais velhos, novidade para os jovens.

Este resgate da auto-estima proposto pelo Ceasm também está presente em outras comunidades e revela o orgulho que estes cariocas têm de seu lugar. O poder das forças mais populares de usar a criatividade para lutar contra o preconceito e contra a pobreza.

A alma carioca que nunca desiste pode ser sentida em vários outros projetos, que também já romperam fronteiras: nas manifestações de artes, música e teatro da Rocinha; na convivência do samba com a Folia de Reis no Morro da Mangueira; no jongo do Morro da Serrinha, em Madureira; nos diversos programas de cultura e educação que nasceram do AfroReggae, de Vigário Geral.

No desabrochar dos novos talentos do Nós do Morro, do Vidigal; nos desfiles bem-humorados das coleções da Daspu, a grife das prostitutas que tanto tem dado o que falar; e no projeto Favela Bairro, que tem como proposta respeitar e valorizar a tradição e a história de cada comunidade beneficiada.

Na área da arquitetura, por exemplo, o caso do Morro do Timbau, que integra o Complexo da Maré, tem sido motivo de debate entre profissionais, professores e estudantes. Um arquiteto que se preze precisa visitar o Timbau, conhecer de perto a organização espontânea dos espaços promovida pela comunidade, aprender com ela o que nenhum livro pode ensinar porque só a vida e a experiência são capazes disso.

No governo do estado, temos o prazer de realizar as obras urbanísticas da Favela Santa Marta, em Botafogo. Ali, não obstante todas as transformações que estão sendo feitas para melhorar as condições de vida de seus moradores, cultura e história locais estão preservadas através do projeto Santa Cultura, que promove também a integração entre o morro e o asfalto com a promoção das várias manifestações culturais.

Todos estes exemplos mostram que a vida e a cultura de cada comunidade pobre faz parte da realidade deste país e que tentar tirá-las do mapa não é a solução para seus problemas.

Iniciativas como a do Museu da Maré podem nos fazer enxergar melhor esta alma carioca, este orgulho e esta esperança incansáveis. Podem ensinar a nossa sociedade tão combalida a difícil mas não impossível arte de dar a volta por cima.

LUIZ PAULO CONDE é arquiteto e vice-governador do Estado do Rio de Janeiro.