Título: QUAL GOVERNO?
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 14/06/2006, O País, p. 4

Já se pode ter uma boa idéia do que pode vir a ser um eventual segundo governo Lula pelas posições que estão sendo assumidas publicamente por PMDB e PT, os dois principais partidos que darão sustentação política ao governo no Congresso. A obsessão de Lula por uma aliança formal com o PMDB, que tentou até o último momento, não se deve exatamente à possibilidade de esse apoio praticamente lhe assegurar a vitória já no primeiro turno, mas sim à garantia de governabilidade em bases institucionais, e não através de negociações pontuais com cada um dos muitos caciques peemedebistas. A possibilidade de vitória no primeiro turno continua no horizonte, como demonstra a nova pesquisa do Ibope divulgada ontem, que confirma que Lula continua ampliando sua vantagem sobre um Alckmin estagnado na casa dos 20%.

O que Lula queria mesmo era evitar o que aconteceu já no primeiro dia. Os líderes da ala governista, senadores José Sarney e Renan Calheiros, ao mesmo tempo que lhe comunicaram que estavam entregando o que prometeram, isto é, a garantia de que o PMDB não terá candidato próprio, passaram já a negociar cargos neste e no ainda hipotético, embora provável, segundo governo.

O ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, preocupa-se com essa negociação no varejo com o PMDB, diante do amplo programa de reformas estruturais que terão que ser aprovadas logo no início de um eventual segundo mandato.

Por isso, mesmo não havendo condições políticas para um acordo partidário formal, Genro insiste num compromisso da ala governista do PMDB com o futuro programa do segundo mandato de Lula.

Não acredito na previsão do governo de que em 21 estados o PMDB fechará acordos com o PT, mas mesmo assim o mais provável é que a maioria do partido adira à candidatura Lula, o que deve dar uma boa base a um futuro governo.

Enquanto as previsões são de que o PMDB deve eleger as maiores bancadas da Câmara e do Senado, podendo chegar a cerca de cem deputados federais nas contas mais otimistas (hoje tem 82, mas elegeu 75), o PT cairá muito de representatividade na Câmara.

Em 2002, mesmo com a eleição de Lula, o PT elegeu apenas 17% da Câmara, uma bancada de 91 deputados, e hoje, entre cassados e expulsos, tem 81. Com a coligação tradicional do PSB e do PCdoB, o governo tinha os mesmos 23% que tem hoje, pois o PSB ganhou mais seis deputados para compensar os dez que o PT perdeu, e o PCdoB continua com os mesmos 12 deputados.

As previsões para a próxima legislatura são mais pessimistas, pois tudo indica que o PT fará uma bancada muito menor, e é provável que o PCdoB não consiga superar as cláusula de barreira que entra em vigor nesta eleição, e pode ter que se fundir com o PT. A coligação tradicional PT-PSB-PCdoB deve fazer menos de 20% da Câmara desta vez.

Por isso o apoio do PMDB é tão importante, não apenas para dar sustentação ao governo no Congresso, como para controlar a tendência que o PT vem demonstrando de querer voltar a assumir uma identidade mais à esquerda, e imprimir ao programa do segundo governo um tom menos liberal na condução da economia.

A divergência mais grave está em torno das reformas estruturais que o governo pretende apresentar, especialmente no que toca a uma nova reforma da Previdência e à flexibilização das leis trabalhistas. Embora ainda não tenha apresentado sua proposta de programa de governo, o presidente do PT, Ricardo Berzoini, já adiantou que o partido não acredita que seja necessária uma mudança na Previdência, e criticou diretamente a idéia de desvincular o salário-mínimo das aposentadorias.

A posição do presidente Lula é diametralmente oposta e, quando fica claro que a qualidade do equilíbrio fiscal que está sendo praticado pelo governo é questionável, torna-se mais preocupante ainda a possibilidade de que um PT mais à esquerda dificulte as reformas que precisam ser feitas.

Até o momento, o superávit fiscal do governo vinha sendo alcançado pela combinação de aumento da carga tributária, redução drástica dos investimentos ¿ os últimos três anos tiveram o menor investimento em relação ao PIB desde o pós-guerra¿- e a contenção do salário do funcionalismo público.

Com a chegada do ano eleitoral, os aumentos do funcionalismo foram acelerados, aprofundando a tendência decrescente do superávit primário do setor público, que vem se registrando desde meados do ano passado.

A deterioração das contas do governo federal é evidente, de tal modo que, na execução financeira do Tesouro Nacional, estão descoladas cada vez mais as curvas dos desembolsos, apontando para cima, e as das entradas, para baixo.

Também o movimento da arrecadação tributária nacional vem crescendo até menos do que o PIB, depois de crescer nos últimos anos. Os números mostram o esgotamento da fórmula que até agora garantiu o superávit, e só com novas reformas e corte de gastos será possível manter-se o equilíbrio fiscal no próximo governo. O problema é que, por caminhos distintos, tanto PT quanto PMDB são refratários a cortes de gastos.

O PMDB, por puro fisiologismo, quer ocupar espaços na máquina pública. O PT, para manter o apoio que tem entre os funcionários públicos, se põe contra a redução das aposentadorias milionárias, que o ministro Tarso Genro classifica de ¿privilégios¿.

Também por ideologia, o PT se coloca contra a autonomia do Banco Central, que era uma meta a ser atingida no conceito que predominava na equipe econômica do ex-ministro Antonio Palocci.

Uma coligação onde o PMDB terá mais poder, devido à sua força no Congresso, é uma garantia de que o governo terá uma característica centrista. Mas com esse viés petista pressionando o programa econômico do próximo governo, a questão é saber quem terá o comando da política econômica.